Meu primeiro apartamento

Luiz Eduardo Amaro

Há seis meses, disposto a conceder-me a privacidade que meus trinta e cinco anos vinham reclamando há tempos, troquei a casa de meus pais por um apartamento em Petrópolis. O imóvel, se não era grande coisa, era grande o suficiente para acomodar minhas roupas, meus livros e uma velha bicicleta ergométrica, usada mais como cabide do que como ferramenta para a boa forma.

O edifício de três andares não tinha elevador, o que me parecia vantajoso: tornava o condomínio mais barato e ainda obrigava-me a subir dois lances de escada ou trinta e quatro degraus. Isso me aliviava o peso na consciência de usar a bicicleta ergométrica apenas como cabide.

No caminho para o 302, meu apartamento, passava pela porta do 102, onde vivia dona Olga, do lar, como ela própria se definia, e mãe de dois jovens de futuro incerto. Seu Osvaldo, o marido, era funcionário público aposentado. Tinha mais de sessenta e andava quase sempre com um abrigo cinza claro de moletom, desses que se compra em lojas populares.

Típica classe média dos grandes centros urbanos, dona Olga se desdobrava para dar um mínimo de conforto e poder aquisitivo à sua família. Não se podia negar o brio com que levava a cabo sua tarefa. No entanto, sem receber o reconhecimento dos outros membros da família, tratava de granjear, ela própria, o reconhecimento dos vizinhos no cumprimento de seus deveres como dona de casa.

Nesse aspecto, eu era tudo de que dona Olga precisava: formado em economia, pós-graduado em finanças, novo no edifício e morando sozinho, passava duas ou três vezes por dia na sua porta, reunindo todas as condições para servir-lhe de escada.

- Como vai? Eu sou a Olga, do 102. O senhor é o novo proprietário do 302, não é? – arriscou, quando me encontrou pela primeira vez no corredor. Tão logo afirmei que sim com a cabeça, ela indagou: – Quanto pagou pelo apartamento, se não se importa?

Embora ainda nem soubesse seu nome, achei que ser receptivo fazia parte do manual de etiqueta dos novos proprietários.

– Paguei 120 mil.

- É que compramos o nosso no ano retrasado. Pagamos 108. Tu vê, uma boa diferença: doze mil reais.

Eu poderia ter argumentado que apartamentos localizados em andares mais altos geralmente valem mais. Além disso, o meu tinha tabuão, enquanto o dela, pelo que pude ver pela fresta da porta, tinha uma forração surrada de cor indefinida. Mas o que é que dona Olga pensaria de mim? Preferi sorrir e dizer-lhe o que ela queria ouvir:

- A senhora fez um excelente negócio.

Depois, continuei subindo em direção ao meu apartamento, enquanto ela dava um até logo.

No mês seguinte, com a aproximação do inverno, resolvi colocar uma janela de alumínio na área de serviço, o que iria aumentar meu espaço disponível e facilitar a instalação da nova máquina de lavar roupa.

- O senhor mandou fechar a área, é? – perguntou-me ela na portaria do edifício, já sabendo a resposta. Depois de eu ter confirmado, ela indagou: - Quanto lhe custou?

- Seiscentos e cinqüenta, em duas vezes – respondi.

- Meu Deus, que caro! No ano passado trocamos a janela da nossa. Consegui por quatrocentos e cinqüenta.

Eu poderia ter argumentado que, em um ano, apesar da inflação estar sob controle, o alumínio havia subido muito, impulsionado pelo crescimento exagerado da China e da Índia, dois países que vinham comprando toda e qualquer commodity que estivesse sobrando no mundo. Também poderia ter dito que o Brasil, gigante adormecido, parecia estar se movendo um pouco mais rápido, depois de muito tempo, principalmente na construção civil, o que poderia estar contribuindo para o aumento de materiais relacionados a esse ramo. Mas o que é que dona Olga entendia disso?

Preferi dizer-lhe o que queria ouvir: “Muito bom negócio” e tratei de seguir para o meu apartamento.

Em setembro, detectando que uma das portas internas estava com cupim, resolvi trocá-la. De porta nova e disposto a manter a política da boa vizinhança, fui abordado, mais uma vez, por dona Olga:

- Vi tua porta velha, disse ela. – Tomada de cupim, não é? “Pois é”, falei. “Coisa difícil de perceber quando se está comprando um imóvel no inverno”.

Dona Olga pareceu não escutar minha justificativa, ansiosa por encaminhar a pergunta que eu já sabia que viria.

- Quanto está uma porta nova? – indagou. Confesso, sinceramente, que me deu vontade de chutar a metade do preço que havia pago. “Mas por que faria isso?”, pensei comigo mesmo. E falei a verdade: quinhentos reais.

Dona Olga torceu levemente a boca, como se dissesse “Pobre rapaz!” E continuou: “Há pouco mais de um ano, trocamos três portas internas. Conseguimos por mil reais. E para pagar em três vezes!”, enfatizou ela, apontando-me três dedos da mão direita.

Eu poderia ter-lhe dito que não tinha nem tempo nem paciência para andar correndo atrás de portas internas. Ou poderia dizer-lhe simplesmente que a minha, com certeza, era melhor que as dela. Ou pior: poderia ter-lhe devolvido que, já que ganhava bem mais que a família inteira dela, dava-me o direito de achar que quinhentos reais estava bom. Mas o que dona Olga pensaria disso?

Tentei sorrir e balbuciei um bom negócio, antes de subir os trinta e quatro degraus até meu apartamento. Dona Olga assentiu e, fechando a porta orgulhosa, desejou-me boa noite.

Alguns dias depois, quando saía do edifício, fui abordado na calçada por dois meninos com quatro bandejas de reluzentes morangos. Ofereceram-se cada uma por um real e cinqüenta centavos ou as quatro por cinco reais. Parecendo-me que os frutos eram sadios e os meninos, honestos, fechei o negócio na hora.

Convencido de que havia feito uma boa compra – uma bandeja daquelas não saía por menos de dois reais e cinqüenta centavos -, já ia subir para guardar os morangos, quando vi dona Olga retornando da feira que ocorria toda quinta no nosso bairro.

Não pude deixar de me assanhar com a possibilidade de mostrar a ela que eu também sabia fazer bons negócios domésticos. A quantia envolvida não era grande, mas era o valor simbólico da transação que importava.

Esperei-a na calçada com um sorriso maroto nos lábios. Ainda mais quando vi que em cima da sacola de plástico vinham duas bandejas de morango cuidadosamente arrumadas para que os frutos não fossem amassados.

- Bom dia, dona Olga.

- Bom dia, seu Márcio, respondeu ela, já mirando meus morangos.

- Vejo que tivemos a mesma idéia!

- Pois é, respondeu ela. - De onde tirou esses morangos?

Antes de dizer-lhe de onde havia tirado as frutas, já fui avisando-a, com o sorriso ainda no rosto:

- Dona Olga, acho que fiz um bom negócio desta vez. E sem precisar ir muito longe de casa! Assim que saí do edifício, dois meninos me ofereceram estes morangos! Comprei as quatro bandejas por cinco reais. Vou ficar com duas e levar as outras duas para minha mãe fazer uma torta.

- Ah, seu Márcio - disse dona Olga, colocando a mão sobre a boca, numa expressão tão falsa de lamento que mal conseguia esconder sua faceirice. – Os produtores estavam distribuindo essas bandejinhas de graça na feira. Cada pessoa podia pegar duas. Era só assinar uma lista, em apoio à luta deles por mais crédito para a agricultura. Que pena! Se o senhor andasse mais duzentos metros, não botava seu dinheiro fora.

Lembro-me de ter procurado, naqueles décimos de segundo em que se fez silêncio, alguma coisa espirituosa para falar, mas não havia jeito: naquele teatro, naquela tragicomédia encenada regularmente no coração do bairro Petrópolis, quisesse eu participar ou não, a mim sempre estaria reservado o papel de otário. À dona Olga, o de heroína.

Já estou até pensando em colocar meu apartamento à venda. É lógico que, para dona Olga, vou fazer outro mau negócio.

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