À procura de MR

Nei Rafael Filho

A agência bancária foi aberta. Passaram da porta giratório, adentrando o caixa três homens. Todos com o mesmo rosto. Um rendeu o guarda, os demais, extremamente precisos, trataram de fazer a limpa na boca dos caixas. Agiram com tanta precisão! A grande conquista é tornar fácil uma realização difícil. Tudo é calculado. O erro é submetido à prova de acerto!

- Mais depressa guarda! Ninguém está afim de pegar cana! – gritou o integrante mais alto do trio.

Era para o segurança desligar o sinal de circuito de TV. O aparelho teria de operar retransmitindo a gravação do dia anterior para a central de segurança.

No holl da agência, de subido e interrompendo os atos, entrou a idosa corcunda, pedindo ajuda para mexer no computador porque eracega de um olho. Ameaçava ir ao PROCON, aturdindo a estagiária na máquina de atendimento eletrônico caso não conseguisse sacar o benefício do INSS.

- Eu sei que é pouco! Mas é meu dinheiro! O governo rouba e nos dá isso para passar o mês! – gritava ao pé do ouvido da atendente.

A moça disse ser impossível atendê-la, o banco não era conveniado àquela autarquia, o Instituto Nacional da Seguridade Social.

- Mas isso é loucura! O que estão pensando! Trouxe até o cartão do IENEPEÉSSI ! Tenho cinco gatos pra dar comida! Vou chamar a imprensa! - berrava, batendo com o guarda-chuva na mesa de centro usada pelos clientes para escrever nos envelopes “pagamentos” ou “depósitos” para logo após enfiar para dentro das automáticas.

De volta ao caixa, os três rapazes usando máscara “Cristo Pop” do filme “Dogma” retiraram de dentro das sacolas destinadas ao dinheiro roubado vários objetos de borracha em forma de salsicha. Puxaram o lacre e os artefatos começaram a inflar.

- São perfeitos, nem dá para acreditar! Se parecem com gente de verdade! – comentou o de menor estatura.

Em segundos o local se encheu de bonecos infláveis em posição erguida, confundido a cena do local. Os três homens deixaram a agência, educadamente, agradecendo a presteza do gerente, deixando sobre a mesa de trabalho uma caixa de Ferrero Rocher.

Saíram os quatro, um a um, sem poupar maneios e trejeitos. Eram bons intérpretes deles mesmos. O quarteto, os três e a velhinha. No carro, pilotado por um homem de feições sulcadas, e na ocasião estava sisudo ao volante, partiram sem alarde, em meios aos tonitruante ameaçador zunido das sirenes da polícia ativada. Na fuga, permaneceram calmos, com o rosto desfeito das máscaras, e a velhinha, tirando a peruca, jogou a cabeleira para trás, revelando uma mulher de escandalosa beleza.

Ao chegarem em casa, refúgio seguro, os quatro puseram as sacolas dentro de uma geladeira com design antigo. Esse tipo de desenho industrial das geladeiras antigas, tipo Gelomatic dos anos 1960, hoje recebe a classificação de “design humilde”. Desativada, verde, lascada, tinha na parte superior não um pingüim, mas um ganso, que como os pingüins de geladeira, era de porcelana. Na sala de estar permaneceram silenciosos enquanto aguardavam as primeiras decisões do “vidente”, o motorista das feições amargas. Era para escolherem o destino do dinheiro. Ele sugeriu quatro opções. Ao anunciá-las, o olhar impunha respeito e silêncio absoluto.

A primeira opção: depositar o dinheiro numa conta bancária da rede MacDonald’s. Uma piada. O grupo votou “não”.

A outra opção: despejar o valor no ofertório da Igreja Universal. Dois milhões de reais. O grupo pensou uns minutos, pediram mais cinco para questionar os prós e os contras. Votaram “não”.

Logo depois, a terceira opção: destinar o valor total do saque para “uma associação de bairro”, “de preferência a mais perigosa das vilas abandonadas, esses currais eleitoreiros da cidade”. Nem pensar! O suado dinheiro desapareceria num “zás-trás”. Seria como o boi jogado no poço das piranhas.

A mulher pediu licença para falar. Sugeriu que talvez fosse melhor, ensinar o uso contábil e seguro do dinheiro e observar a formação da riqueza. Os homens se olharam em admiração. Ela prosseguiu o discurso, justificando o perigo que é despejar o dinheiro aos líderes comunitários. Enriquecer do nada os desafortunados é premiar o mais perverso dos vícios de nossa cultura: a vadiagem.

No dia seguinte, depois de uma excelente noite de sono, o Vidente reuniu outra vez o grupo em volta da mesa do café da manhã. Mandou esparramar feijões sobre a mesa.

Síria, a mulher linda, acompanhou as mãos do chefe tratando de espalhar em perfeitos movimentos os grãos de feijão numa indestrutível tranqüilidade.

Sem muita espera, o Vidente de improviso passou a justificar seu apelido.

- Vejo o futuro! – alertou com a voz grave - Minhas mãos vêem e cruzam pedras do caminho.

O grupo, em atenção, esperava a quarta hipótese do destino da fortuna.

- Iremos adotar uma criança. Vamos adotar. Deverá ser uma menina.

Síria deu um salto. Isto não está certo, combinamos permanecer em cinco e assim deverá permanecer. Depois falou Sêneca, o pensador do quinteto. Falou Chico Harpo, o hábil e opinou, enfim, Peter O’tool, o mais alto e bonito dos homens.

- Vocês! Quietos! Não brinquem com o destino! É uma força indomável! – asseverou o prestidigitador.

Síria começou a chorar. O Vidente lembrou-a de sua condição estéril. Refrescou a memória dos demais: Chico Harpo, queria ser médico. O’toll, escritor e Sêneca almejava reger as grandes orquestras. A mulher, embora fosse linda, com rancor saiu despejando palavras ácidas para cima do Vidente.

Ela interpelou esbravejando:

- Você se acha o melhor! Consegue ver o futuro e planeja nossos destinos. Então responda: se nós quatro aqui somos uma quadrilha de frustrados, se você sabe da nossa dor, diga quem é você!

Num silêncio tumular, ele fez uma volta em torno da mesa. Com o olhar lânguido e voz firme ao falar, afinal respondeu:

- Eu sou.

E só. Foi dito deste modo, para compreender tão somente. O inverno se aproximava. Planejaram uma nova investida na riqueza de terceiros. O próximo ataque seria uma espécie de “tour de force” dos golpes já realizados algum dia.

A angústia do grupo era menos pontuada pela pressão das atividades do ofício de roubar e, cada vez mais inquinadas para o risco, porque afinal, o viés de toda aquela ansiedade significava terem de se superar a cada novo empreendimento.

- Chico Harpo um dia perguntou se seriam pegos. Se algum dia iriam “cair”.

Nem toda pergunta o Vidente respondia. Mas deixava por escrito a resposta.

Numa manhã iluminada, Síria ao partir ao meio um suculento melão, reparou um papel dobrado entre as sementes no interior da fruta.

- “Jamais cairão, desde que não queiram a riqueza para si.”

Síria e O’tool se gostavam. Sêneca e Síria se desejavam. Síria e Chico Harpo se amavam. Ela era a mulher de três. Eles a tratavam como única alternativa para superar o vazio permanente nas mulheres belas, sempre invertendo as coisas, confundindo, mas dispostas ao sacrifício por uma causa. Síria, no pacto selado, era a única mulher do mundo. O Vidente jamais tocou em mulher. E o quinteto jamais se ofendiam. Ela era dos três homens. Organizava os mapas e os roteiros de estudos além de competir-lhe elevar os ânimos, encorajar e satisfazer suas latentes desejos.

Após um jantar esplêndido, o mentor do grupo anunciou a ordem para o dia seguinte:

- Está se aproximando a hora de irem à procura da bebê menina.

O grupo obedeceu. No final de uma tarde, quase noite, Síria chegou carregando nos braços uma menina de alguns meses enrolada em lençóis e cobertores.

- O nome será escolhido pelo Vidente.

Ele não se pronunciou. Foram todos dormir. Chico Harpo, o hábil, cuidou dos papeis e das economias para a educação da filha. A menina era chamada de “filha”. Dormiram os três homens com Síria. Um a um. Depois à sós, a mulher foi alimentar a pequena. Cuidou do sono, do conforto, deu carinho ao bebê.

- Qual o nome, Vidente? Qual é o nome da nossa filha?

Mas ele advertiu: era cedo para esta preocupação. Quando ela foi grande o suficiente para compreender as coisas, então ela escolherá o próprio nome. Por enquanto, foi ordenou ao quarteto estudarem informática, lógica e dois idiomas, o inglês e o mandarim, a língua dos chineses.

Estes estudos eram necessários para invadir senhas e penetrar nos segredos de estado. Fizeram isto.

Aprenderam a manejar segredos de governo, desativando bombas, inutilizando ogivas e ordenaram o mundo cuidar da população, da água e das imagens em permanente feiúra. Nosso mundo tem de ser bonito com é a face de Síria.

Entretanto ela ficou mais velha, porém aprendeu a conservar a beleza, oferecendo generosas explicações sobre os fatos da vida para a pequena.

- Qual dos quatro tios será o meu pai? – indagava a filha com uma lágrima na voz. Mamãe Síria ofereceu escolha livre. Mas o Vidente disse “não”. Ele não poderia ser o pai. De jeito algum. Esbravejava conceitos metafísicos da existência, como por exemplo de ele “não possuir o cheiro da humanidade”.

Enquanto a menina crescia e tudo em permanente movimento no universo, outro serviço apareceu. Os quatro ganharam a missão de ingressar no Congresso. Era para dar fim em sete políticos. Depois, mais sete. E, mais outros sete. Aí parariam. A missão estaria concluída. Agiram e fizeram o serviço.

A imprensa, chocada, não soube informar as mortes e os desaparecimentos para o delírio da comoção nacional.

- Vidente! – gritou O’toll de seu quarto, visivelmente embriagado, numa noite tempestuosa - Nossas reservas! Diga-nos! Nossa fortuna! Quando iremos usá-la? Estamos envelhecendo e nem aproveitamos a vida ainda!





Sem obter resposta, o trio masculino foi surpreendido por bilhetes encontrados dentro do cano de suas meias penduradas no varal.

Aqueles escritos diziam de tudo. O importante foi a despedida de seu líder. Ele partiu para um lugar desconhecido, Xanadu. O grupo teria de se desfazer. Cada um tomaria rumo próprio, ou nem isso fariam. A menina, no entanto, seria entregue à adoção do Estado.

Síria, naquela ocasião soube manter a serenidade.

- Vamos fazer o seguinte. A menina ficará conosco. Eu me proponho a casar com um de vocês. Mas permaneceremos os quatro, juntos. E, seremos em cinco, com a menina.

Então foram ver a menina. Não estava no quarto. Partiu com o Vidente.

- Mas ele falou em adoção do Estado. Vamos raciocinar! O que aconteceu? – indagou Harpo.

Síria ficou num pavor sem conseguir para manter a serenidade. O desespero adentrou suas entranhas, músculos, nervos, se situou em pedaços, e era a serva dos três homens, “os três desconjuntados”, como gostava de afirmar, mas isso não bastava! Naquele momento de extremo pavor não parou de repetir: “Quero minha filha de volta”.

De volta ao ponto de origem os quatro cuidaram estabelecer a ordem das coisas ditas pelo chefe. Órfãos, foram à geladeira da fortuna e a perceberam vazia. Ele partiu com a fortuna de anos! E levou a menina! – exclamaram.



Síria, com o rosto amassado de tanto chorar, gritou:

- Fomos abandonados! Abandonados e agora sem recursos! Sêneca!, gritou.Você é o pensador, ache um jeito!

Na manhã seguinte se separaram.

Nem tão jovens, nem tão idosos, tinham com certeza força nas pernas. Peter O’toll foi atrás de seu sonho. Sêneca fez algo parecido. Chico Harpo e Síria decidiram procurar um cartório para oficializar seu casamento. Ele cuidou da fertilidade da mulher. O marido explicou sobre as terras coberta de sal na Bolívia. Ainda assim, em solo salino, nascem plantas arbustivas no lugar. Ela cuidou de tudo para dar coragem e inspiração ao homem escolhido, ajudando-o nas artes da cura, seu esposo e amante eterno, agora médico. De algum modo particular, genuíno e bem acabado, todos os quatro souberam remover os pavores e aflições do mundo. Ajudar as pessoas, e “diluir o veneno espalhado desde tempos imemoriais”, como ensinou o Vidente, na época dos primeiros trabalhos. É possível estar enganado, mas o último gesto praticado pelos intrépidos destituídos da fortuna e da menina adotada, embora nem tão ousado, verdade seja dita, fosse decidir ir ao encontro, ainda que tardio, da trilha do paraíso deixada pelo mentor de todos aqueles anos. A escolha de seguir em frente à procura de Mister Xanadú reinventou a própria sorte do quarteto. Tudo recomeçou dentro denma pizzaria do Bairro Menino Deus. Síria chamou a atenção para o pizzaiollo, alto, elegante, e mesmo no meio de tanta farinha solta no ar, permanecia limpo e sereno como um monge. Discretamente,os quatro trocaram de mesa duas vezes, confundindo o garçom, um jovem educado, para reunirem-se muito próximo ao forno à lenha. Era ele, o guia. Sêneca chorou. O’tool riu. Síria cruzou os braços e Harpo fez que não viu. Perguntaram pelas coisas, como iam as coisas, onde estava a menina, queriam muito vê-la, tocá-la. O Vidente puxou as pizzas para o lado menos quente do forno. Justificou suas artes, para evitar a massa da pizza fora do ponto.

- Usamos a melhor lenha. Verdade. O segredo é a fonte do calor – disse com a voz firme.

E Síria foi direta:

- Onde ela está? Que nome você deu a ela?

Os amigos tentaram acalmá-la.

O silêncio estabelecido entre os cinco reuniu a própria idéia da forma de final feliz da história dos cinco, dos quatro, dos três, dos dois, de um só que eram cinco ao mesmo tempo, eles, o quinteto, inteligentes, audaciosos, românticos e proibidos ao senso comum, às legislações e aos bons costumes.

- Não os deixarei sem respostas – assegurou o mentor vidente – ela está bem. Cresceu. Está linda. Só estou aguardando mais maturidade, mais crescimento...

- Então? O que pretende? – indagou O’Tool? E, os demais, fizeram a mesma pergunta.

O Vidente riu. Disse que não era o que estavam pensando, ou o que poderiam estar deduzindo. Jamais tocaria na moça. Jamais tocaria em mulher alguma!

- Vou educá-la, apenas. E me retirar. É só.

Sêneca o chamou de arrogante. Queriam saber para onde. Harpo, o lógico, costumava dispor das palavras:

- Retirar lembra retiro.Ir para algum retiro. O senhor vai para algum retiro?

- Vou embora e serei esquecido. Vocês irão se separar. Aliás, já estão assim. Desde o casamento de Síria com o médico... bem, vocês de modo algum são os mesmos!

Outra vez o silêncio rondou o quinteto. Ele, o guia, falava movimentando com a pá de madeira os discos de massa recheados de mussarela, tomates e pescados, entre achas de lenha em brasa e paredes de tijolo refratário.

- Então deixe a menina conosco – clamou Síria.

E tratou de respondeu de imediato.

- Vocês ficarão com ela. Mas...

- Mas...

- ... terão de explicar o que fizeram ao longo de todos esses anos... os seqüestros de milionários traficantes, a morte de políticos corruptos, os assaltos aos bancos fraudulentos, e toda aquelas vezes que entraram nos computadores dos governos para esclarecer desvios de verbas e compra de campanhas. Vão dizer sim. Tudo. Tudo! – repetiu com gravidade.

- Mas com que finalidade! Como iremos fazer isso!

- Façam.

E fizeram. Cautelosa e graciosamente. Contaram suas histórias fantásticas para diversos jornalistas. Deixaram as provas. Jamais os rostos, fotos com os rostos, ou os nomes verdadeiros ( em segredo, o Harpo, na verdade se chama Antônio Casemiro ). Foi o modo que encontraram, foi sugestão de Sêneca. Alguém há de ler e levar a sério. Talvez anônimos errantes venham a formar no futuro um novo quinteto, ou quarteto. Talvez a menina viesse a se tornar a nova guardiã, a nova Vidente – pelo menos, tinham algo em comum, ele e ela não tem um nome! Tudo é possível em nome da diluição do veneno milenar.

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