A virada

Léo Ferlauto

Ali estava desde sempre. Lugar confortável, tranqüilo. Sensação de nadar em águas tépidas, confusão e frio deixados fora. Escutava as batidas do coração saboreando o ritmo primal. Haveria som mais delicioso?De quando em quando escutava suaves canções vindas de algum lugar ali por perto provendo sensação de calma. Noutras ocasiões, vozes familiares inspirando ternuras. Dormia quando tinha sono. Sonhava belezas. Se alimentava sem dar chance à fome. Tudo arranjado de maneira harmônica, orgânica, simples. Espaço paradisíaco. Dificil acreditar haver mundo melhor.

Havia, claro, dias de alvoroço que repercutiam por ali. Vinham de fora e apenas aguçavam curiosidades, sem mais. Estava num lugar seguro.

Mas chegou aquele dia. Desde cedo a rotina modificou, divergiu. Aquela paz que parecia eterna, num repente sumiu. Pressas, movimentos inusitados, conversas ininteligíveis, vozes familiares e outras não. Gemidos? Rumores próximos, longínquos, um ar de ansiedade se insinuando, nervosismos desconhecidos.

Logo sentiu-se como peixe fora d’água, e assustado gritou o mais estridente que pode, protestando contra aquela desordem violenta. O paraíso espatifado. Depois daquele dia, nunca mais foi o mesmo. Uma luminosidade intensa feriu seus olhos, seus ouvidos percebiam estrondos. Nascera, finalmente, para um mundo que ele jamais imaginara existir.

Depois daquele dia nunca mais fui a mesma

Adriana Duarte

Quando meus pais me contaram
Ah! Meus medos abdicaram
Meus lamenos se soterraram

Quando meus pais me contaram
Minhas alegrias desabrocharam
Meus sentidos renasceram

Quando meus pais me contaram
que a escuridão quase obscureceu minha claridade
em pleno desabrochar da vida,
minhas esperanças se fortificaram.

Sonha, Alice

Sara Cadore

Era feliz como Alice. Em uma noite gelada de chocolates quentes, algo antes inofensivo encheu seus olhos de tanta angústia. Como se não existisse um braço amoroso, desatou a chorar. Teve uma saudade incontida do que nunca viveu. Doía-lhe a falta do amor, que entre todos, não vai ter.

Pensou no super-herói que nunca apareceu, nem nas embalagens dos cereais matinais. No mocinho desconhecido que não espantou seus monstros de estimação, moradores antigos do pé da cama. No galã com quem nunca vai viver final de novela.

Lembrou que não precisava de nada disso. Ela nunca foi de comer sucrilhos, nem alimentava assombrações e, muito menos, acompanhava folhetins. Por que se lamentar agora? Desligou a TV, beijou com paixão, vestiu seu melhor sorriso e voltou ao país das maravilhas.

Planos

Vera Veríssimo

Ao comemorar a aprovação do Plano A, o plano B já havia iniciado.

O passado

Vera Veríssimo

Com o tempo que tu tens disto aqui, vais me entender. Não é simples querer parar de pensar nisso. Ela era tudo o que eu tinha de melhor e ali estava, naquela esquina movimentada, barulhenta, tentando me dar desculpas pelo que eu tinha visto.Era sempre assim, ela me sacaneava, dizia que era da minha cabeça,minha interpretação, me explicava, me abraçava, e eu ia desculpando, uma vez atrás da outra. Mas cara, um caso com um aluno meu.Não ri, isso é sério no meu meio..Sei, já ouviste de tudo neste ninho de pilantras. Não estou ofendendo, até já somos amigos, maneira de falar. O que dói mais? Como se mede dor? Agredir, perder a cabeça, matar quem eu amava, suportar a ausência... Agora, condenado a ficar nesta prisão de memórias tanto tempo. O castigo é não parar de pensar nisso. Essa é a maior sentença, ficar a sós, e como única posse, o passado.

O prego

Luis Henrique reis Volkart

Aqui estou eu dentro desta caixa enferrujada rodeado de ferramentas velhas e sujas. Fui condenado a ter esta existência sem graça e cruel. Nasci um prego. Sim, um simples prego. Não sou bonito esteticamente, minha cabeça é desproporcional ao resto do corpo. É um pouco arredondada, o que da a impressão de ser menor ainda. Sou sem graça, sem atrativos e morrerei um dia cravado em um pedaço qualquer de madeira sem prévias apresentações nem rodeios.

Não vim de uma família nobre, não sou feito de aço inoxidável como alguns de minha espécie. Sou resultado da fusão de diversos materiais. Sucatas. Tenho vergonha de dizer. Estavam em seus últimos dias, não tinham mais utilidade alguma na vida. Eram materiais doentes, quebrados, amassados de segunda categoria, ou mais. Sou um prego de tamanho médio, nunca irei crescer, é a vida, já me conformei com isso. Vivo aqui sozinho, meus amigos já se foram todos, nunca mais tive notícias de nenhum. Fico imaginando onde estarão, como estão. Não consigo conversar com as ferramentas, são um grupo fechado, parece que elas falam um outro idioma que não consigo entender, parecem viver em um outro mundo. Eu não sou o único prego desta caixa. Sou o único que está inteiro. Há outros esquecidos lá no fundo. São pregos que retornaram após alguns anos de inteira dedicação ao seu destino. Não gosto deles, são tortos, quebrados, têm a cabeça deformada pelas marteladas que sofreram. Alguns voltaram totalmente loucos. Costumam falar sozinhos, ninguém os entende. Outros parecem que sofreram lobotomia. Perderam totalmente a vontade de viver, dizem ser em razão das marteladas. Eles ficam sonhando com a fusão com outros materiais que culminará com o fim derradeiro. Para completar, ainda tem aquela doença misteriosa e degenerativa sem cura. Dizem que é contagiosa. Ela vai corroendo as entranhas da gente, a pele fica de uma cor marrom meio amarelada, o corpo vai se deformando, feridas em alto relevo brotam por todos os lados, o fim é doloroso e certo, não tem volta. Mantenho o máximo de distância deles, prefiro ficar sozinho.

O destino de um prego é levar pancadas violentas na cabeça até penetrar em um pedaço de madeira, às vezes até concreto, o que é bem pior. Há relatos de que alguns se quebraram ao meio ao tentar furar o concreto, dizem que é uma cena horrível. O martelo é nosso pior inimigo, é violento, não tem dó de nosso sofrimento, seu objetivo sempre é a de atingir a cabeça com pancadas fortes e precisas. É um ser repugnante, ás vezes gosta de dar repetidas pancadas até conseguir terminar seu trabalho. Outras vezes desfere apenas uma pancada certeira e fatal. O que salva nossa existência é que nós pregos temos um sonho. Sim, apesar de nosso destino já ter sido traçado, todos temos o mesmo sonho. Alguns desviam o assunto dizendo que estão satisfeitos em serem o que são, tudo mentira, pura hipocrisia. A grande verdade é que, o sonho de todos os pregos é ser um parafuso. É um sonho impossível, mas nós sonhamos com isso cada minuto de nossas vidas. Nutrimos dentro de nós emoções confusas, invejamos e admiramos ao mesmo tempo os parafusos, eles são bonitos, charmosos, elegantes. Suas curvas são perfeitas, calculadas milimetricamente por seu criador. Elas proporcionam uma sensação de constante movimento aos seus corpos. São robustos e fortes, não têm fraquezas, orgulham-se do que são. Suas cabeças são achatadas proporcionando uma simetria invejável em relação ao resto do corpo. O cabelo é sempre bem repartido ao meio o que proporciona um ar de superioridade. Alguns ainda têm o cabelo repartido em quatro partes bem calculadas, é o máximo da beleza estética. Estão sempre em embalagens mais bonitas e ajeitadas, nós não, viemos sempre em sacos plásticos espremidos um contra os outros como se alguém nos tivesse simplesmente jogado para dentro. Alguns tentam fugir colocando os pezinhos para fora, tudo em vão, o sucesso é quase impossível. Os parafusos não têm inimigos como nós, pelo contrário, têm um aliado, a chave de fendas. O martelo nem chega perto deles. A chave de fendas os trata sempre com carinho, não há violência alguma em seu relacionamento. Seu encaixe é perfeito em suas cabeças, o movimento é feito em pequenas voltas que lembra mais uma dança entre dois amantes apaixonados. Quando estão penetrando na madeira, pequenos filetes serpenteiam seus corpos. É uma união perfeita que dura até completar sua finalidade. Os parafusos desfrutam de mais uma vantagem, a vantagem do reaproveitamento. Algumas vezes a chave de fenda os convida para dançar mais uma vez, só que agora no sentido oposto. Dizem que dá vontade de chorar de tanta emoção. Eles voltam intactos, prontos para mais uma dança.

Para nós pregos é impossível lidar com o sentimento de inveja e admiração ao mesmo tempo. Tenho que confessar que isso me corrói por dentro, acho que deve ser pior do que aquela doença misteriosa que ataca minha espécie. Mas no fundo me conformo com a minha existência como prego, não tem volta, a vida quis que fosse assim. Só desejo que quando chegar minha hora que seja rápido, que venha com uma pancada só, violenta e certeira.

O mendigo

Luis Henrique Reis Volkart

Parado entre a porta e o corredor, Paulo olhou pela última vez para dentro de seu apartamento. Respirou fundo, pensou um pouco e fechou a porta. Com um olhar perdido desceu as escadas que davam até a rua. Nas mãos, apenas uma sacola de plástico que não deixava mostrar seu conteúdo. Lá fora, uma chuva fina caía sem dar tréguas. Já era o meio da tarde de mais um domingo de julho. Para Paulo, esse seria um domingo diferente. Alcançou a rua levando mais tempo do que costumava levar. As calçadas estavam molhadas, uma leve brisa soprava alguns pingos em seu rosto. Não estava muito frio, mas a temperatura dava sinais de que iria baixar rapidamente.

Paulo começou a caminhar em direção ao Parque Central. A distância era de aproximadamente cinco quarteirões de seu apartamento. Em razão da chuva, as ruas estavam praticamente desertas. Poucas pessoas se aventuravam a estar fora de casa com aquele clima. Paulo caminhava sem muita pressa. Os pensamentos vinham à cabeça como se fossem uma metralhadora disparando sem parar. A vida desfilava em sua mente de forma aleatória. Cada vez que sentia algum pensamento colocar em dúvida sua decisão, apertava o saco plástico que estava embaixo de seu braço e caminhava com mais determinação.

Após meia hora de caminhada, chegou ao Parque Central. O local estava praticamente vazio. Paulo caminhou até o lago situado na ala sul. Aquele seria um bom lugar. Chegando lá, sentou-se em um banco que lhe oferecia uma visão privilegiada do lago. Alguns patos nadavam alheios a chuva e ao frio que já havia aumentado. Colocou o saco plástico ao lado. Fitou o horizonte com um olhar perdido e pensativo. Não, não queria mais pensar, já havia decidido o que fazer. Pegou o saco e começou a abri-lo. Foi quando apareceu alguém. A aparência não era muito boa. As roupas eram gastas e encardidas. O cheiro exalado pelo homem era terrível.

- Olá, tem horas amigo? – perguntou o sujeito com voz cordial.

Paulo não respondeu. Procurou ignorar. Pensou que talvez assim fosse embora e não o incomodaria mais.

- Olá, tem horas amigooooooo? – perguntou novamente o indivíduo em um tom de voz mais alto e firme.

Vendo que aquela figura não iria embora, Paulo respondeu:

- É quatro e meia.

- Meu Deus, como o tempo voa nessa época do ano – respondeu o intruso.

- É! – murmurou Paulo.

- Ah, você também acha? Agente não tem tempo de fazer quase nada, quando vê, o tempo passou. E este clima horrível, eu estou todo molhado, meus ossos estão congelando - o sujeito falando e aproximando-se mais de Paulo.

Paulo olhou para ele de cima para baixo não entendendo o que aquele moribundo poderia ter para fazer. Era um desocupado com certeza.

- Se você não se importa, eu gostaria de ficar sozinho – respondeu Paulo com um tom de voz firme.

- Ah, um solitário! Eu percebi de primeira. Você sabia que a pior coisa para um solitário é ficar só? A solidão vai destruindo aos poucos a pessoa. Você acha que tá tudo bem e de repente bum, a depressão. Não precisa se preocupar amigão,eu vou lhe fazer companhia – sentou-se o sujeito no banco bem ao lado de Paulo.

- Olha, eu já falei que gostaria de ficar só. Será que você poderia respeitar meu desejo -Paulo encarando o intruso com a fisionomia fechada.

- Oi meu amigo, fazendo sua corrida diária? – o homem gritando para uma pessoa que passava correndo fazendo Cooper..

O corredor apenas deu uma leve virada com a cabeça para ver quem estava lhe chamando. Sem tomar conhecimento, continuou sua corrida.

- Parece que ele não te conhece cara – observou Paulo.

- Eu também não conheço aquele sujeito. Mas é sempre bom fazer novos amigos aqui pela vizinhança – respondeu o indivíduo com um sorriso de satisfação.

Paulo começou a ficar nervoso com aquela figura atípica ao seu lado. Seu plano havia se desenrolado tão bem até o momento. Aquele lugar, aquele dia já haviam sido escolhidos há meses. Ele teria que dar um ultimato ao intruso.

- Vou pedir mais uma vez.Você poderia me deixar sozinho agora! Tudo o que eu quero é um pouco de privacidade - Paulo encarando o homem e empurrando-o com o braço.

- Ei, calma aí amigo, sem violência! Eu estou aqui para lhe fazer companhia. Um amigo não briga com o outro. Vou lhe dar um pouco de privacidade – o sujeito apenas virou o corpo um pouco para o lado mas continuava observando Paulo com o canto dos olhos.

- Só me faltava essa – Paulo falando alto.

- Qual seu nome amigão do peito?

- Não te interessa!

- Muito prazer, meu é John Wayne – o homem com um sorriso largo no rosto.

- Ah é! Onde está o cavalo John?

- Meu Deus, tava aqui agora mesmo. Horse, horse, onde você está? – o sujeito gritando e procurando algo ao redor. – Não dá mais para confiar nesses cavalos hoje em dia. É só alguém vir e oferecer um pouquinho de grama e eles se mandam. Ainda dizem que são os melhores amigos do homem!

- Não seriam. Deixa pra lá – Paulo com a fisionomia fechada.

Paulo perdeu a paciência. Colocou a mão na sacola e puxou um trinta e oito niquelado. Já que aquela figura não saia dali, resolveu continuar seu plano assim mesmo.

- Ó meu Deus, o que você vai fazer com esta arma! Por favor, não me mate! Eu tenho mulher, filhos e uma cadelinha manca que está esperando eu voltar para casa para alimentá-la – o sujeito apavorado pulando para fora do banco.

- Eu não vou te matar seu imbecil! Você não significa nada para mim. Eu vou é me matar. Vou acabar com esta minha vida medíocre. Vê se me deixa em paz agora – gritou Paulo.

- Ah, ainda bem. Que alívio amigo, pensei que você ia enfiar uma bala na minha cabeça. Toma cuidado da próxima vez, você pode matar alguém do coração desse jeito - O homem falando com aliviado. – Mas por que você quer se matar! Sua vida não está boa? Sua mulher te traiu com seu melhor amigo? Perdeu tudo, está arruinado financeiramente?

- O que você é por acaso, um psicólogo? Meus problemas são particulares. Deixa eu ficar em paz. Vai cuidar da sua mulher, de seus filhos e de sua cadelinha manca - Paulo com um ar pensativo quase desanimado.

- Ah não, era tudo mentira. Sabe como é, um homem em pânico é capaz de inventar qualquer coisa. – o sujeito rindo.

- Idiota ! – observou Paulo.

- Não de tanto valor pra vagabunda ordinária. Logo ela vai se arrepender e irá voltar pra você - o indivíduo falando.

- Ei, olha como fala da minha esposa. Ela me traiu mas eu ainda a amo –argumentou Paulo.

- Eu sei como é. O homem arruinado financeiramente, traído no amor, ainda tenta se prender a um último suspiro de esperança. Depois ela volta pra casa arrependida. O imbecil aceita mentindo para si mesmo que é por causa dos filhos. Finge não notar nada quando passa e os vizinhos ficam comentando – o intruso falando em tom filosófico.

- O que você sabe sobre a vida. Você não passa de um pobre coitado que vive pelas ruas pedindo esmolas. Dorme ao relento. Fede como um animal. Suas roupas são uns trapos tão sujos que chegam a ser lustrosos. Faz quanto tempo que você não lava o cabelo. E banho? Sabe o que é isso? Você é o que a sociedade tem de mais repugnante - Paulo em um tom de voz ameaçador.

- Puxa amigo, você sabe realmente humilhar uma pessoa. Ta se sentindo melhor assim? Eu não fui minha vida inteira mendigo. Eu trabalhava, tinha uma casa. Tudo mudou só por causa das vozes que eu comecei a ouvir. Elas me perseguem por todos os lugares – o mendigo com um ar triste e melancólico.

- Ah, eu sei. A velha história da voz boa e da voz má. Do tira bom e do tira mau. – observou Paulo.

- Tá se achando muito esperto, um gênio, não é? Fica sabendo que não tem essa história de voz boa e voz má. As duas vozes que escuto são bem más. Uma vez eu discuti com meu chefe e uma das vozes mandou eu dar um soco na cara dele. A outra mandou eu arrebentar a cabeça dele com uma cadeira. Eu acabei fazendo as duas coisas pra não cria problemas entre elas. – o mendigo com cara de satisfação.

- Você é louco – observou Paulo.

- Como você descobriu, quem lhe contou, era meu segredo particular! – o homem preocupado. – Por isso que não dá pra contar nada pra ninguém. Eu prefiro muito mais conversar com as pombas. Evito dialogar com os patos, eles parecem que estão sempre rindo de nós. As pombas são diferentes. É só jogar migalhas de pão que elas ficam ao seu redor por horas conversando. O problema é que eu não entendo nada do que elas falam. Mesmo assim eu prefiro conversar com as brancas. As pretas são um mau presságio, não gosto delas, nem de comê-las.

- Você já falou bastante. Será que agora eu posso ficar sozinho? – Paulo falando desanimado.

- Não, não, eu não posso perder esse espetáculo. Eu quero ver você se matar. Daí eu chamo a polícia e eles me levam até a delegacia pra contar o que aconteceu. Posso tomar um bom café com os policiais e ainda comer um sanduíche. E enquanto eles não tiverem olhando, encho os bolsos com o que conseguir pegar. Ah, você me dá seus tênis? Tire-os antes de se matar, pode manchar de sangue e não sair mais – o mendigo fazendo cara de esperto.

- Quem disse que eu quero platéia – Paulo indignado.

- Eu conheço seu tipo. Já vi vários por aqui. Quem quer se matar não vem pra um lugar público. Por que não se matou em casa? Tinha medo que seu corpo só fosse achado dias depois quando os vizinhos não agüentassem mais o fedor de podre? – o mendigo em tom autoritário.

- Eu vim para cá pra ter paz em meus momentos finais. Não vou deixar um lunático me atrapalhar – observou Paulo.

- Olha amigo, eu posso ser louco, mas eu nunca vim da lua. Não que eu saiba! E se o parque tivesse cheio? Você ia dar um tiro na sua cabeça na frente de todo mundo? Eu acho que você não passa de um grande covarde, uma cacaca de gente. Seja homem, tenha caráter. Lute pela sua vida. Conquiste novamente o que perdeu. Uma bala na cabeça não resolverá seus problemas. E caso o tiro não lhe matar e você ficar com problemas cerebrais que o impeçam de tentar novamente? Eu não irei cuidar de você. Eu não sou tão amigo assim pra ficar trocando as fraldas geriátricas – o mendigo gritando com Paulo. - Olhe para mim. Eu não tenho nada e apesar disso não fico pensando em me matar. Busque forças dentro de você para resolver qualquer problema que venha a surgir.

- É, você tem razão. Sabe que no fundo você parece ser uma boa pessoa. Você até que tem bons pensamentos – Paulo olhando para o mendigo com afeição.

- Ah, não são meus. Eu li num livro que estava no lixo. Arranquei a página e tentei decorar por mais de um ano, eu acho. Mas eu sei que sou uma boa pessoa. Ás vezes eu penso que meu destino foi viver nesse parque pra ajudar às pessoas – o mendigo falando e observando o horizonte.

- Sabe que eu estou com uma fome danada. Você não quer ir até lá em casa e tomar um café, comer alguma coisa? Lá nós podemos conversar mais – Paulo levantando do banco.

- Já era hora amigo. Pensei que você não ia me convidar nunca, eu estou morrendo de fome. Eu quero comer aquele bolo de laranja que vendem na confeitaria da esquina. Ah, eu só tomo café com leite desnatado – o mendigo colocando o braço no ombro de Paulo.

Os dois saíram caminhando juntos. O mendigo havia proporcionado a Paulo uma nova chance em sua vida.

Carta adolescente

Evelena Boening

Rascunho de carta de adolescente para a sua amada, na qual ele risca o que a timidez o impede de expor

Marcela:

Ontem, eu vi que tu andas muito bem de skate. Aliás, tu também és boa nos desenhos. Na aula de artes, posso sentar do teu lado? Acho que vai me dar sorte. A professora devia ter te dado 10 pelo trabalho de ontem.

Fico muito contente quando estamos juntos no barzinho. Descobri que, aqueles doces que tu gostas, são mesmo muito bons. Ontem eles estavam em falta e me lembrei de ti. Na festa do meu aniversário vou comprar um monte.

O Truque tá meio doente. Vou levar ele no veterinário. Será que podias ir comigo? Contigo ele fica mais quietinho. Acho que ele gosta de ti. Tu me emprestas a gaiola de carregar cachorro? A minha quebrou.

Rodrigo

Campeiro

Evelena Boening

Frio. O minuano mandava. Em cima do cavalo, debaixo do poncho grande, grosso, sem remendos, ia sorrindo e fumando um cigarrinho de palha. Fumo do melhor.

Na beira dum capão, parou, amarrou o cavalo. Bicho bom não pode ficar solto por aí. Entrou no matinho e cuidou pro xixi não sujar as botas já engraxadas para manter o brilho do couro. Aproveitou a parada para tomar um gole de pinga, daquela quase azul de tão boa. Montou, cuidando para também proteger o animal com o poncho. Confortável, continuou a viagem.

Duas semanas antes, ele levara um baita susto. Aquele cadáver não estava nos seus planos. Aliás, não havia cadáver nos seus planos. Tinha medo de assombração e defunto, como todo mundo sabe, dá fantasma. Achou o corpo perto dum riacho. Não viu sangue. Pelo jeito como estava, parecia que sofrera um ataque e caíra do cavalo, que pastava por ali.

No falecido, uma coisa chamou-lhe a atenção: o revólver. Um .38 de dez balas, lindo, brilhante, grande, poderoso, caro. Antes de chegar mais perto, ele rezou um Padre Nosso e uma Ave Maria. Depois, com muito cuidado, pra não alertar a alma do finado, retirou a guaiaca com a arma, assoprou pra limpar e colocou na cintura. Tinha dinheiro. Buscou a montaria do morto, examinou a mala de garupa e gostou: roupa boa, munição, faca de prata. Pegou suas coisas menos velhas e as ajeitou no cavalo .

Fazia tempo que ele não sabia o que era casa, comida na mesa, cama fixa, trabalho garantido. Conhecia muito índio que levava um vidão com roupa, cavalo, churrasco, mulher, tudo de primeira, pagando pouco e até mesmo não pagando. A diferença estava na arma que agora ele também tinha e podia usar pra demonstrar como ele merecia ter tudo o que desejasse, pelo preço que estipulasse.

Com o matungo a cabresto, ele e a sua nova-vida montaram no cavalo dos indiferentes restos mortais perto do riacho.

Lendo

Evelena Boening

Office Boy gostava de ler. Quando podia, sentava quietinho e abria um livro emprestado da biblioteca da escola. Chefe implicava.

Num texto de aventuras na mata brasileira, o índio explicou pro branco: “I-panema quer dizer água ruim.”. Páragrafos depois, enfrentando perigos, Office Boy ouve o grito do Chefe:

“Larga esta coisa e leva este pacote pra expedição.”

Office Boy pensou, quase resmungou:

“Chefe-panema.”

Podia ter resmungado. Chefe não lê, não ia entender mesmo.