O vacilo

Mário Lúcio

O cheiro do papelão lhe era familiar. Tudo lhe era familiar, desde a menina que passava vendendo cigarros até o garçom com o perfume irritante e adocicado. Os olhares se cruzavam a todo instante e, em determinados momentos, convergiam para o centro da mesa. Tudo calculado. As expressões, os gestos e ações faziam parte do seu ritual e dos parceiros. Ele, escondido atrás de figuras e números, esperava o momento do bote. Tudo normal como sempre esteve. O blefe, o engodo ou a dissimulação, tudo extremamente familiar. Tudo cronometrado, calculado e analisado. No instante crucial, pelo qual ele já passara em inúmeras ocasiões, o Incrível, o inacreditável, o imponderável (pelo menos para ele, é claro) aconteceu. Pela primeira vez desde o todo e sempre, ele vacilou. Distraiu-se. Sucumbiu. Desconcentrou-se. Pela primeira vez ele, não o seu corpo, abandonou a mesa. Pela primeira vez ele flutuou sobre o ambiente de penumbra, fumaça e odores confiáveis. Pela primeira vez ele notou os olhos da menina que passava vendendo cigarros.

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