Ao leitor

Felipe Longhi Malheiro

Sensata providência da mãe natureza oportunizar-me um regresso, se é que apercebeu-se dele. Trapaceei para voltar, confesso. Decisivas as indicações do hipopótamo, o do delírio. Volto com a mesma idade e curado, esse o segundo segredo que aprendi no mais-que-sesquicentenário descanso, de uma sexta-feira de agosto de 1869 ao estupefaciente novembro de 2011.

Surpreende, inobstante, a quantidade de emplasto de que necessitarei para empreender a cura final, propósito único de meu retorno. Cresceu a humanidade e a hipocondria ramificou além da conta. Isso já me bastaram alguns dias para ver. Acerquei-me de mendigos e tenho vivido nos albergues que a eles se destinam, se é que interessa ao distinto leitor o que tenho comido, na primeira semana em que vivo novamente.

Imaculado, saí da primeira existência. A própria morte, ocorre-me agora, teve-me efeito equivalente ao do emplasto. Não desejo, todavia, a extinção do ser como solução a seus males. Minha segunda chance de salvação é inaugurada em pristinas condições. Sem família, desprovido de laços que não tencione possuir, isento da culpa das chagas do presente. Família, ideia que me mói o cérebro a cada vez que o percorre, da qual, felizmente, passei ao largo.

Procuro adaptar-me, perplexo com o novo mundo, mas não tanto assim. Entre passeios e conhecimentos inúmeros, chega o momento em que pesquiso na Biblioteca Pública por meu apelido, a ver o que se houve dos meus parentes dos 1870 em diante. Recém-voltado que sou do além, avanço que poucos ou nenhum deste tempo hauriram, pouca coisa é que não vai me paralisar de susto.

Aguardo a resposta do jovem funcionário, enquanto celebro interiormente a nova chance de viver e fruir o pleno amor da glória, o primeiro lugar entre os homens – desta feita, curando de fato a hipocondria. O arrepio da felicidade presente, a que não deve ser sentida, já prenuncia algo, contudo. Os olhos brilhantes do encarregado informam. E a suspeita que não revelei na última frase do último capítulo de meu livro, travestindo-a, ao contrário, de certeza cheia de pompa e glória, confirma-se. Pobre linda Marcela, por que houve de ocultar-me isso?

Capítulo Único

“Encontrei este exemplar aqui, senhor:”

CUBAS NETO, Marcelo. “O legado da nossa miséria” - Rio de Janeiro – RJ: 1943.

Zumbido

Gilson Morais

Olhava fixamente para o relógio de pulso. Havia uma mosca lá dentro. Ela estava parada sobre o número onze. Bateu com o dedo no vidro, mas o inseto o ignorava. Tirou o relógio e o meteu no bolso. No ônibus lotado alguém podia ver aquela coisa asquerosa. O que iam pensar dele?

Olhou para os lados já no escritório, e retirou o objeto do bolso. A intrusa estava agora sobre o doze, mas o onze havia sumido. Essa desgraçada comeu o onze, pensou, e com certeza agora vai continuar com o estrago. E ficou cutucando o relógio, exasperado, tentando imaginar como aquele bicho tinha entrado ali. Tentou abri-lo, mas, fosse por falta de habilidade ou nervosismo, não conseguiu. Escolheu uma gaveta e jogou-o lá dentro.

Aquilo ficou martelando na sua cabeça toda a manhã. Não conseguiu trabalhar direito: rendeu pouco e o pouco que fez não prestou. Perto das onze horas resolveu encarar sua inimiga, mas quando abriu a gaveta uma nuvem de moscas se libertou e zuniu pela sala. Teve a impressão que uma entrara em sua boca e ele ficou tossindo, cuspindo, engasgado. Assim como apareceram, os bichos sumiram. No relógio o doze sumira e a faminta agora devorava o seis.

Era melhor ir almoçar, mesmo com o estômago dado um nó, mesmo que não conseguisse comer. Ao menos arejar a cabeça. Mas das dez horas, seu relógio corria direto para uma da tarde, quando deveria estar de volta. Não podia sair. A mosca comera seu horário de almoço. Podia sentir o zumbido de escárnio vindo daquela miserável.

Arremessou o relógio na parede, pisou em cima, bateu com um grampeador. A única alteração foi o sumiço do seis e o inseto digerindo o sete.

Jogou-o de volta ao fundo de uma gaveta que fechou à chave. Atormentado, passou horas com a cabeça entre as mãos, como se tentasse conter sua sanidade. Era melhor esquecer aquele dia, ir para casa e amanhã tudo voltaria ao normal. Estava trabalhando muito, devia ser um estresse. Isso. Era estresse. Talvez fosse a hora de tirar aquelas férias já adiadas havia cinco anos. Há tempos não suportava o chefe. Ia visitar família, rever amigos, cuidar da saúde. Estava se sentindo mesmo muito magro e sem disposição. Ia ligar pra Fátima, ver se marcava um cinema. Será que ela toparia? Há meses não dava notícias. Estava resolvido. Tomaria um novo rumo. Um bom banho, uma noite de sono e vida nova.

Juntou suas coisas, mas na parede o relógio corria das cinco direto para as oito horas. O seis e o sete também haviam sumido. Pela janela o sol não se punha, estava nascendo novamente. Ouviu um zumzumzum dentro dos miolos.

Estava preso. A hora de sair nunca iria chegar.

Andanças

Maurem Kayna

Demorou a aprender o português de modo a não provocar perguntas sobre sua nacionalidade toda vez que pedisse uma informação ou o almoço no vegetariano do centro. Mas, tão pronto logrou reproduzir a fala dos locais, arrependeu-se da sutil intervenção cirúrgica que lhe deu tranqüilidade no início. Hoje, pensa que poderia ter sido aceito no cotidiano da cidade sem despertar qualquer suspeita apenas mudando o cabelo e as roupas, talvez o óculos, que era sua marca.

O medo de que o descobrissem era, na verdade, pura paranóia. A encenação da sua morte foi muito convincente até para os mais próximos e o tal Chapman segue na prisão. Tinha um pouco de remorso pela acusação injusta, mas tranqüilizava-se porque de outra forma o fã não teria punição alguma para outros atos hediondos já cometidos. Mark, tão perturbado, talvez até se sentisse agradecido pela chance de poder fazer tamanho favor ao objeto de suas obsessões. Não falou disso quando iniciou as confissões, mas não se negou a contribuir quando a ideia lhe foi apresentada.

Agora já não faz diferença. O passado ficou bem enterrado, está assegurada a fama eterna para o nome de antes e agora tem a rotina sem peso de tocar violão na noite curitibana, entremeando as canções recém criadas com os sucessos que os estudantes ainda se emocionam ao ouvir. Não se arrepende, mesmo que haja noites melancólicas em que lamenta a saudade dos filhos, sabe que há manhãs frias e claras para apoiar os que ainda sonham e protestam. Na mulher nunca mais pensou, aqui já teve muitos outros afetos eternos desde sua chegada.

Apontamentos de um crime

Meu amigo,

Eu já não aguentava mais tanta treta. Era sempre a mesma coisa. Marina queria dinheiro pro leite, dinheiro pras fraldas, dinheiro pro médico, dinheiro pro gás. Queria que eu fosse junto, que eu pegasse no menino, embalasse o menino, falasse com o menino. Almoçasse com a família, jantasse com a família, tomasse café com a família!

Eu sou um sujeito calmo. Lá no bar todo mundo me conhece. Nem o futebol me altera. Nunca bati em mulher. Até a Janda, que é uma safada, todo mundo sabe, se salvou.
Aquilo era demais! Eu só pensava em acabar com aquela falação, aquela pegação, aquele enjôo.

Não sosseguei até conseguir uma arma e daí, foi na mesma noite. O Chicão, parceiro de pelada, me passou o bufo. Chamei ela lá pros lado do Partenon. Parei numa rua com pouco movimento e não foi preciso dar muita corda. Foi só dizer que não ia na feijoada do sábado. Ela começou o show e eu terminei.

Sr. Doutor,

Não entendi nada. Tudo bem, eles estavam discutindo ou, pelo menos, a mulher estava desabafando, chorando. O homem parecia calmo, contido. Não dizia nada! Passei por lá devia ser mais de meia-noite. Vinha da casa da minha namorada que mora a duas quadras dali. Eu vinha até feliz porque o pai dela tinha ido com a minha cara. Era a primeira vez que nos víamos. A mãe eu já conhecia.

Voltando ao assunto, aquilo estragou a minha noite! Dois tiros! Dois balaços! Sangue por todos os lados, a mulher caída no chão e o camarada e-va-po-rou. Só sei que tinha um casaco preto e umas chuteiras amarelas. Quem é que mata a mulher usando chuteira? E amarela?

Apontamentos

Ele morava num barraco com a mulher e a criança de um ano e meio. Estavam juntos desde a gravidez da mulher. Os vizinhos contam que eles discutiam todas as noites, quando ele chegava em casa meio bêbado. A mulher começava reclamando, primeiro num tom normal, depois gritava e chorava. Ameaçava ir embora com a criança. Era aí que ele se jogava no chão e prometia que nunca mais tocava na pinga.

O Joca, que mora ao lado, já ia adiantando pra Marlene, sua companheira, com uma linha de antecipação, todo o diálogo.

Já eram motivo de gozação na vila. Quando apareciam juntos, sempre tinha um engraçadinho que perguntava: -Então, e hoje, que horas começa? Uma noite, puseram todas as cadeiras do boteco debaixo da janela deles, como se fosse um teatro.

A opinião geral é que a situação estava insustentável. Aquilo ia explodir. Só não se sabia quando, como e onde.

Capitão Rodrigo no RS de hoje

Luiz Fernando Farina Keller

“Mas chê loco!” – Exclamou Rodrigo, ao chegar à capital.

Em sua face era notório o espanto. Encontrava-se deveras abismado com as inovações nunca vistas em sua terra, principalmente com as cascas de ferro que deslizavam sobre quatro rodas e as pequenas vestimentas das moças que viu pelas estradas, cheias de placas, supreendentemente pintadas de preto e tracejadas de amarelo.

Apesar do encanto e dos inúmeros questionamentos que fervilhavam em seu porongo, estava cansado das batalhas diárias e da longa viagem. Queria apenas um trago e uma mulher: havia dois meses que não tinha uma.

Para tanto, troteou um pouco mais e, após avistar uma fila de prendas lindas de pele à mostra e de rapazotes de roupas esquisitas, amarrou o cavalo, pensando consigo: “Cheio de afrescalhados! Esses inventos não fazem bem pro índio!”. Deu-lhe dois tapas fortes de despedida e partiu em direção ao bolicho.

Rodrigo passou ao longo da fila, inclinando respeitosamente o rosto: “Buenas noches, senhoritas!”

Ao chegar na entrada, riu em voz alta: “Dublin? Mais parece nome de bicho. Mas pela quantidade de china, deve tá loco de bom lá dentro!”

Distraído, o segurança que monitorava os perfilados não notou que o cidadão de poncho azul, chapéu às costas e lenço encarnado havia furado a fila. Ainda não o havia visto, mas diante do silêncio dos demais, não questionou a sua chegada. Estranhou sua roupa, mas, a fim de acelerar seu trabalho, foi direto:

“Nome?” – Perguntou o funcionário, cabisbaixo, pronto para anotar na comanda.

“Capitão Rodrigo Cambará, amigo. Aperte os ossos!” - Estendeu a mão o gaudério, com um sorriso no rosto.

O funcionário não entendeu muita coisa, mas compreendeu o gesto e cumprimentou-lhe.

“Bonito o seu bolicho! Suponho que a sua graça seja Dublin.” – Complementou o Capitão, reforçando o U da primeira sílaba.

O funcionário gargalhou, apertou-lhe a mão novamente e entregou-lhe a comanda: “Figuraça! Pode subir que os garçons vão lhe atender”.

Rodrigou estranhou o papel que recebeu, mas o guardou, entendo-o como um mimo. Subiu uma pequena escadaria que dá acesso ao galpão, analisando ostensivamente as mulheres, mantendo a sua postura ao chegar ao final do curso:

“Buenas e me espalho! Só não completo meu cumprimento porque só tem fresco neste pago!” – Entoou alto.

Poucas pessoas o ouviram, pois o volume da música era muito alto, mas as que o notaram, olharam-no com o canto dos olhos, censurando seu comportamento.

Após desmanchar um pouco do seu sorriso irônico, Rodrigo abancou-se. Esparramado, chamou o garçon: “Amigo! Me vê uma canha da buena! Ligeiro!”

Enquanto o funcionário dirigia-se para dentro do galpão, a fim de cumprir a sua ordem, passou uma linda mulher por trás do Capitão. Atento, com sua mão esquerda, segurou-a forte pelo braço direito e a galanteou, olhando-a profundamente, mas sem retirar aquela meia lua do rosto:

“És muy bela, senhorita! Senta-te ao meu lado e vamos prosear um pouco."

A moça apreciou seu porte e sua pegada, porém, estava de saída: “Olha... não posso, mas me dá o MSN para conversarmos”.

O capitão gostou da resposta. O sorriso de canto de rosto foi vagarosamente às orelhas. Virou para o lado e gritou: “Amigo, desce 10 eme-esse-enes aí pra china, que hoje vai ter!!!"

Aventura

Giselle dos Santos Steinstrasser

Naufragaram. Era noite de tempestade. Havia algo luminoso à distância. Remaram até lá. Um gigantesco prédio, todo envidraçado, no meio do mar. Subiram numa espécie de peitoril, bateram na janela. Uma chinesa abriu. Pediram ajuda. Ela informou que precisava verificar o protocolo para essa situação. E eles equilibrados em pouco mais de trinta centímetros de cimento. Bateram novamente. A chinesa voltou. Eles explicaram que estavam exaustos, não aguentariam muito tempo. Ela disse que chamaria um supervisor. Algo na água. Uma barbatana. Se movia rápido, direto neles. Bateram outra vez, desesperados pediram ajuda. A chinesa fez sinal de que precisava terminar de preencher os papéis. O tubarão saltou, a boca aberta, enorme. Medonho. Eles se jogaram contra o vidro. Gritaram. Era só abrir a janela. Só. A chinesa fez sinal para que aguardassem. Sentiram o bafo podre do tubarão. Iriam morrer. Faltava pouco. Fecharam os olhos. Nada... Ainda nada. Olharam. Uma orca havia pego o peixe. Então se encolheram, esperando pela burocracia.

AVENTURAS

Nicole Carina Siebel

I

Beijou-o com paixão ímpar. Pela tela do computador.

II

Os olhos de Viviana estudavam pela janela o que se passava do outro lado da rua. Havia na pracinha um grupo de crianças que brincavam com baldinhos e pás, construindo o mais lindo castelo de areia do mundo. E como eram felizes, sorrisos no rosto e mãozinhas sujas de terra.

Mas Viviana tinha uma boneca feita de porcelana cara, que estava sentada na mesinha de chá, imaculada, cabelos bonitos e penteadas. Vivi usava vestido cor-de-rosa, enfeitado, e anelzinho de pérola. Tinha um castelo cor-de-rosa cheio de torres e uma carruagem de princesa, mas o que não daria por um pouco de areia!

Aventura

Regina Blacher

Aventura é um beijo na madrugada. Frio na espinha. Um toque de uma mão que treme e chega. Encosta. Dez mil horas, dez mil vertigens. Vervirgens. Só os virgens têm vertigens? Certamente, a primeira vertigem é a mais profunda, a que tonteia mais, a que cega mais, a que tapa o mundo.

Aquele beijo foi assim. Começou de tarde. Numa tarde. Numa tarde em que Joana entrou no bar da faculdade e Pedro vinha caminhando. Nunca soube se ele estava saindo e desistiu ou estava indo apenas até ali mesmo.
Raios saíram dos olhos dele. Chispas saíram dos olhos dela.

Tudo o que aconteceu em seguida ficou assim, determinado por aquele eixo. Eles rodaram a posição, mexeram braços, pernas, sorrisos, palavras, só não mudaram o olhar.
Os olhos de Joana tinham ficado azuis e os de Pedro, castanhos.

Com o tempo, a luz foi-se ajustando. O brilho do flash focou um lábio. Uma pestana. Uma narina respirando. Uma confusão de pedaços dele, uma confusão de pedaços dela.

Perder o controle. Dar o controle. Seguir o controle. Seguir o instinto. Instintar o controle.

Seguir aqueles olhos, seguir aquelas pernas e aqueles caracóis.
Ser seguida. Ser seguida até ser tocada e sentida e definida como uma parte de novo inteira e intensa e viva.


Tocar até encontrar a própria pele, e beijar até encontrar o próprio sopro.

Desencontros

Maurem Kayna

Pediu um analgésico forte. A enfermeira respondeu que não poderia fornecer nenhum medicamento não previsto no seu prontuário, mas assim que o médico passasse pelo posto ela comentaria sobre sua dor. O residente era atencioso, viria vê-la, com certeza. Tentasse dormir. Quem sabe um chazinho?

Beatriz não se deu ao trabalho de argumentar e sequer recusou o chá, mas precisava mesmo era de um sonífero potente e só falou em analgésico porque imaginou maiores chances de ser atendida. Sem conseguir o que queria, aferrou-se ao incômodo físico, expressando-o em gemidos sem energia, apenas como um artifício para não pensar, concentrada no rumor que escapava dos lábios ressequidos fugia do único pensamento disponível.

Sentia-se desperta como nas manhãs de férias dos tempos da adolescência, quando dispensava o despertador e levantava com ânimo de primavera, arrumava-se e ia para a quadra treinar. Mas agora era diferente, e a dimensão dessa diferença tornava maior a vontade de fuga. As feridas ardiam e nos intervalos do próprio gemido, as frases dele voltavam, misturando-se ao cheiro asséptico dos lençóis e fazendo o estômago se contrair.

Tentou forçar a lembrança para situar-se no tempo, mas não tinha conta dos dias no hospital, sabia de pelo menos cinco anoitecimentos. Foram muitos mais desde a tarde em que a socorreram na estrada.

Nenhuma enfermeira disse claramente, nem o médico que interpretava os registros na planilha ao pé da cama e os aparelhos aos quais estava ligada. Ela também preferia não perguntar, mas tinha quase certeza de ter perdido o mando das pernas, pois o corpo todo doía, dentro e na pele, mas elas se mantinham mudas.

A irmã foi visitá-la quando acordou, e talvez tivesse ido antes também, mas Beatriz achava isso pouco provável. E ele? Não queria acreditar que seria duro o bastante para insistir na sua palavra de não querer vê-la novamente, mesmo com toda a ênfase de sua sentença quando soube da situação com Amanda e com aquele gesto querendo ser tão definitivo – rasgar a certidão na frente dela. Não, ele só não tinha coragem de encarar suas cicatrizes, nem habilidade para consolá-la caso realmente não pudesse mais andar, mas acabaria vindo. A espera, porém, exigia mais paciência do que lhe era natural.

Esses pensamentos – contidos e cerceantes, mal haviam se formado esfacelaram-se sob o grito que fez a enfermeira correr ao seu leito. Convulsionava em choro quando vieram atendê-la, e o sedativo foi administrado para garantir o repouso dos outros pacientes da unidade.

Beatriz dava a impressão de dormir sem dor. Assim a encontraram na visita seguinte, quando, finalmente, a irmã dela conseguiu convencê-lo a ir também. De início acharam até melhor que ela não acordasse, assim era mais fácil falar com o médico sem medir o timbre da voz e para não correr o risco de que ouvisse os prognósticos desanimadores.

Depois das palavras diretas do especialista se demoraram olhando o seu rosto quase cicatrizado e os sinais indecifráveis dos aparelhos que comandavam a entrada e saída de ar dos seus pulmões. Nele o remorso cutucava com força e na irmã residia uma ausência morna, quase conformação. Sem trocar palavra alguma olharam-se sem poder dissimular o desgosto que o ritmo da respiração imposta – tranquila como não costumava ser antes do acidente – lhes provocava.

Décimo Andar

Mardilê Friedrich Fabre

De novo o mesmo pesadelo. Perseguido, atirava-se de uma janela do 10º andar. O som das sirenes, embora longe, o incomodavam. A cabeça lhe doía. Tomou um comprimido para dor. Debaixo do chuveiro, lembrou-se. Chegara tarde e ... acompanhado! Correu para a janela. Aberta. Na calçada, amontoavam-se algumas pessoas. Perturbou-se. Morava no 1011.