Virando o jogo

Eleni Nizu

Lua nova, inverno, garoa. O céu, um breu. O desgraçado, como sempre, no bar. Tantas vezes desejei que ele se metesse numa briga e levasse a pior. Mas não, isso nunca aconteceu. Já passa da meia-noite. O ponto de ônibus me serve de abrigo e esconderijo. Sinto uma espécie de dormência – nem o frio nem a chuva vão me fazer mudar de ideia. E lá vem ele, finalmente. Sei bem aonde ele pensa que vai. Não dessa vez, não mais, nunca mais. Saio da toca. Ele para, olha e demora a reconhecer a figura encapotada que segue em sua direção. Ao se dar conta de que sou eu, começa a enxurrada de insultos, me xinga de tudo quanto é nome, grita, gesticula, esbraveja, ameaça. Mantenho certa distância. Ele nem se importa com o homem que passa, apressado, assistindo a tudo. Eu, mãos nos bolsos do casaco, empunho minha alforria. Agindo com a naturalidade de quem não tem opção, espero o estranho se afastar alguns passos, saco a arma e disparo duas vezes contra o meu alvo.

***

Lá vou eu, mais uma vez atrasado pro trabalho. Essa bosta de ônibus tinha de quebrar logo hoje? Trabalhar à noite tem lá suas desvantagens, mas o adicional noturno acaba compensando. E eu preciso muito dessa grana. No inverno é pior – até os ossos doem de tanto frio. As ruas sombrias e o chuvisco insistente me fazem pensar se não teria sido melhor gastar mais uns trocados e pegar um lotação. Bom, agora é tarde – apenas três quadras me separam de uma caneca de café quente e uma jornada de seis longas horas madrugada adentro. Mas o que são aqueles dois ali? Parece que estão brigando. Xi, o cara está nervoso – dá pra ver que bebeu além da conta. Enquanto ele berra, o outro, de casaco e gorro escuros, apenas ouve, imóvel. Faz bem – discutir com bêbado é perda de tempo. A noite é tão densa, que não consigo ver os rostos. Ora, eles, que são brancos, que se entendam! Aperto o passo. Uma quadra para o café. O que foi isso? Um tiro? Mais um! Corro, antes que sobre pra mim.

***

Envolta num casaco preto, os cabelos encobertos pela boina de feltro, ela narra o que acabou de acontecer. No rosto – que é o que se pode ver –, o roxo de uma violência recente. Não há lágrima nos olhos inchados, tampouco emoção na voz rarefeita. Coloca sobre a mesa um 38 cano curto e diz que simplesmente não teve escolha. Deveriam lembrar-se dela – afinal, não foram poucas as vezes que ali estivera em busca de ajuda. Mas de nada adiantou – sabe como é, "a gente está assim de coisa mais importante pra resolver". O agente recém-nomeado parece ser o único a prestar atenção ao depoimento lacônico da homicida confessa: no corpo, cicatrizes; na alma, fraturas ainda expostas. “Você se arrepende?” – ele pergunta. "Sim" – responde ela –, "me arrependo por não ter mandado ele pro inferno há mais tempo”.

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