Lua Minguante

Simone Becker

De olhos vermelhos e inchados, Carina observava a lua minguante e opaca que, mesmo assim, permanecia alta , tão dona de si naquele negro céu. Já deveria haver uma estrela a mais acompanhando a sua majestade.

O ar condicionado estava estragado, as economias de Erick haviam sido gastas algumas hora antes, ainda sobrara duas prestações para pagar. Uma freada brusca a fez contorcer o ventre latejante, Carina baixou o vidro para respirar, o gelado do sereno a arrepiou rasgando mais fundo a sua dor. Fechou, deixando só uma frestinha.

Não sabia se doía mais a alma ou a carne. Apertou com força a mão de Érick, ele ainda estava ao seu lado. Ela não olhava para o seu rosto, sentia uma culpa imensa sobre os ombros. Observava os prédios passando, uma ou outra luz acesa nos apartamentos. O que será que acontecia àquela hora? Bebês a chorar? Casaizinhos adolescentes namorando? Meninos desobedientes na internet? A rua, praticamente deserta, uns mendigos eufóricos, outros adormecidos na pedra como se fosse um berço macio.

- Amor, você fica comigo hoje?

- Não dá, preciso descansar, o trabalho vai ser puxado. A sua mãe pode cuidar de você. Me liga, mas só se precisar muito.

Ela não questionou, uma nuvem de vergonha tomou a sua mente e duas lágrimas restantes deslizaram ardendo em sua face.

O rapaz estacionou a acompanhou até o elevador, mas não tinha tempo para subir. A moça entrou silenciosamente, pegou, na farmacinha, um comprimido para a dor, outro para dormir. Afastou a cortina, mais uma vez, observou as estrelas. Deitou e apagou.

Ao amanhecer, seu amor não telefonou, devia estar muito chateado pela grana que teve que gastar. Carina resolveu esperar uns dias para falar com ele. Enfim, ligou o telefone residencial só chamava, o celular caía na caixa de mensagens. Foi até a sua casa para demonstrar arrependimento e implorar o seu carinho. A vizinha a informou de que a casa estava vazia, por alugar. Não sabia mais chorar, calou-se e seguiu cabisbaixa para casa de sua mãe, sem a mão de seu amor e nem a da estrelinha, distante, no céu. Maldita a hora em que amou. Maldita a hora em que apenas fingira engolir a pílula do dia seguinte.

Só mais um prédio cinzento

Simone Becker

Maurício vivia em um prédio cinzento próximo aos trilhos do trem. Podia sentir o movimentar dos vagões, o imóvel tremia a sua passagem. Gostaria de morar em outro lugar, mas o seu trabalho de garçom não dava para isso. Aquele prédio até combinava com a cor indefinida, acinzentada, dos seus olhos.Talvez tivesse nascido destinado a viver ali.

A semana estava conturbada, Maurício iria receber uma grana a mais para cobrir o horário noturno de um colega, no entanto o stress e o cansaço se tornaram seus companheiros inevitáveis. Pegava o trem até o trabalho. Estava sempre lotado, geralmente ia em pé. Naquele dia, acordara atrasado, olhou as horas, não dava tempo de comer nada. Saiu correndo, pegou o trem, ficou espremido, mais uma vez, entre os demais passageiros.

Durante a viagem refletia sobre o contraste de sua vida miserável com a dos clientes que servia no restaurante. Fazia mais de um ano que não comprava sapatos novos, o seu relógio de pulso precisava de pilhas, mas não encontrava um minuto livre para ir comprá-las. Sua vida não tinha nada além de trabalho. Talvez uma namorada a deixasse mais interessante, contudo estava sem tempo e nem dinheiro.

Já era noite, no trabalho, corria feito um louco quando, de repente, parou por não conseguir desviar o olhar de uma linda dama que entrava no restaurante. Ela trajava um vestido negro, delicado e sensual que delineava sua cintura. Tinha os cabelos presos em um penteado que exibia a sua nuca nua e macia, provavelmente perfumada com uma essência enlouquecedora que ele não conseguia sentir daquela distancia. A atração foi tão intensa que ele imediatamente a seguiu até a mesa, passando na frente do colega que deveria atendê-la. Serviu a inebriado com o seu perfume, que agora, próximo a ela, podia sentir, era melhor do que havia imaginado.

Voltando para a copa, aos poucos foi despertando daquela grande emoção. Colocou os pés no chão firme. Aquela bela dama não era para homens como ele, sem dinheiro, sem cultura. Relembrava que não tinha tempo sequer para trocar as pilhas do relógio, quem dirá para cuidar de uma rainha como aquela. Seus olhos ficaram aguados, mas era homem e estava trabalhando, deixaria para pensar sozinho, antes de dormir.

Depois do jantar, a mulher lhe fez um sinal, Maurício a atendeu prontamente, ela queria apenas pagar a conta. Ele se demorou para trazer a nota do caixa, fazia isso, para poder tê-la sob seus olhos, só por mais alguns instantes, não devia, mas não sabia parar. A dama pagou, deixou uma boa gorjeta, deveria ser rica, ele se odiou por ter tido aqueles pensamentos, era hora de se colocar no seu lugar de garçom. Baixou os ombros e recolheu os talheres. Percebeu, embaixo do prato, um telefone celular. Lugar estranho para guardar o aparelho. Já ia correndo entregar o telefone à mulher quando encontrou, junto dele, um bilhete com um número e o dizer: Adorei seus olhos, ligue, por favor. Ass: Ana k.

O cego e o povo

Gabriel M. de Moura

O povo atravessa o semáforo. O cego, não. Ele aguarda alguns segundos a mais, pois sabe que há motoristas que costumam furar o sinal vermelho. Ele tem paciência; o povo, não.

O cego anda cauteloso, com sua vareta simplória tateando o solo. Devagar, vence o caminho da Rua da Praia até o Mercado Público. Ouve os vendedores ambulantes, os pedintes, os pássaros da Praça da Alfândega, as peças do jogo de damas percorrendo o tabuleiro de pedra. Se não fosse cego, ficaria horas a fio sentado em algum banco apenas a observar o movimento.

Quando ele sente o cheiro de peixe, sabe que a Prefeitura está próxima. O centro de Porto Alegre tem muitos cheiros, e caminhando devagar se consegue distinguir cada um deles. Porém, as pessoas estão sempre muito apressadas, ou então imersas em pensamentos, atordoadas, desatentas à vida que passa. Já ele, afinado com o presente, não perde nem um segundo de existência. Dá importância apenas àquilo que é essencial.

Propagandas. Vitrines. Ofertas. Homens e mulheres perdem segundos preciosos do dia com projetos, sonhos e promessas. Comprar uma geladeira nova, ganhar na loteria, consultar o futuro com a cigana. Será que eles não enxergam que tudo isso não passa de ilusão? Será que é necessário perder tudo de vista para entender a finalidade da vida?

Ser feliz é algo reservado a poucos. Ele, o cego, se considera um cidadão feliz. E, justo quando decide parar sua marcha e anunciar a todos ao redor uma verdade universal por poucos compreendida, uma bicicleta cruza seu caminho. A bengala prende no raio de metal – a roda arremessa a bengala no meio da rua. O cego perde seus olhos, ninguém o acode.

Ele senta no meio-fio. Estica a perna e procura a velha companheira, tateando o asfalto com a sola do sapato, cuidadoso para não ser atingido pelos carros. Ouve um estalo metálico - uma lotação atropela seu já disforme instrumento. Sente medo, depois raiva e por fim revolta. Ninguém olha por onde anda. Ninguém consegue ver o outro. Estão todos muito ocupados pra pensar. Assim, ele senta, encostado na parede de um prédio. Chora, com as mãos no rosto, sozinho na escuridão, e ouve moedas caírem a sua frente.