Magia Cigana

Tânia Melo

Aquele rosto não me saía do pensamento. Guardava todos os seus traços , mas o olhar- ah, o olhar- era feito brasa ardente, que queima sem piedade, deixando uma cicatriz para o resto da existência.

Acocorada, riscava na areia com a mão. Eu fazia o meu passeio costumeiro à beira-mar.

Levantou-se e ofereceu-me a visão mais linda que eu já tivera em toda vida. Era pouco mais que uma menina, mas explodia na sensualidade de seus movimentos, combinando com o verde estampado do vestido que marcava todo seu corpo.

Pés descalços, livres, como ela inteira parecia ser. Na cabeça aquele lenço rosado, deixando entrever mechas de seus cabelos escuros num desarrumado que parecia muito mais criado pela magia do que pelo vento.

Tudo era deslumbrante, mas nada superava o seu olhar preso ao meu. Único, como uma impressão digital. Era dela e de mais ninguém no universo. O verde daqueles olhos grandes, movendo-se sob longas pestanas pendentes e negras, formava um conjunto com as sobrancelhas espessas que davam ao resto do rosto uma expressão intensamente melancólica e ao mesmo tempo inquieta e penetrante. Refletia contrastes como a doçura e a selvageria, uma imensa bondade e uma crueldade sem limites. Triste e altivo, amoroso e duro.

Eu tentava, inutilmente, demonstrar uma calma que estava longe de sentir.

Ela aproximou-se, tomou minha mão e por alguns minutos ficou assim, a deslizar os dedos, como num afago sobre cada uma das linhas que a formava. Não pronunciou nenhuma palavra. Depois de alguns instantes, soltou-a e, dando-me as costas, seguiu caminhando em direção ao mar. Molhou os pés, as mãos e jogou água sobre o rosto, como uma criança a brincar.

Antes de ir-se, lançou-me, como despedida, mais um daqueles olhares indefiníveis e enlouquecedores. Por toda a noite, a imagem da cigana ficou a minha frente. Recordava o conjunto da obra – pois era uma obra de arte viva: o olhar enigmático e todos os seus movimentos. Ela não parecia andar, mas flutuar. Ainda sentia seu toque em minha mão. Fechei meus olhos e o seu perfume e maciez retornaram, inundando tudo ao meu redor.

Resolvi beber um pouco de vinho, enquanto ligava ao meu amigo Fernando, para contar-lhe sobre o que me acontecera durante a caminhada à beira- mar. Ele era um gozador e riu muito do meu encantamento por uma mulher da qual não ouvira uma palavra.

Esperei ansiosamente pelo final de tarde do próximo dia. Andei o mais rápido que pude até o local da minha caminhada costumeira, buscando com os olhos todo o espaço da praia. Tudo vazio e silente. Nem sinal daquela mulher que me perturbara tanto. O que ela teria visto em minha mão? Por que não dissera nenhuma palavra e permanecera tão séria o tempo todo? Sempre ouvi contar que as ciganas interpretam os sinais contidos nas linhas das mãos das pessoas desde o nascimento. Essas linhas não se alteram durante toda a existência, revelando como será nossa vida até a hora da morte. Nunca havia acreditado em nada disso. Somente agora, após ter tido minha mão entre as mãos daquela mulher linda e misteriosa, é que vi despertar em mim uma necessidade enorme de saber o que a fizera calar. O que vira? Onde andaria?

Durante mais de uma semana procurei-a sem sucesso. Desaparecera por completo.

Numa sexta-feira, fui com alguns amigos a uma festa. Havia muita gente. Estávamos parados próximos a um balcão quando, erguendo os olhos, eu a vi andando pela sala, por entre as pessoas, tal qual na praia. O mais estranho era que ninguém parecia vê-la, pois suas roupas coloridas, os cabelos rebeldes semi cobertos pelo lenço rosado e os pés descalços em nada combinavam com os demais e com o local onde estávamos. O normal era que chamasse a atenção. Mas isso não acontecia.

Fui em sua direção, mas a perdi. Fiquei parado, sem saber para onde ir ou o que fazer. Entrei em outra sala, e lá estava ela, de frente para mim, com aquele mesmo olhar que me enlouquecera. Fui me chegando e, de novo, ela tomou minha mão entre as suas, olhando e tocando em cada linha existente.

Perguntei-lhe, então, o que vira em minha mão naquela tarde, na primeira vez em que nos encontramos na praia, e se havia enxergado o mesmo agora, neste instante?

Pela primeira vez a vi sorrir, um riso largo, brilhante, que me deixou ainda mais encantado.

̶ Vi algo que me deixou assustada. Algo em que não quis acreditar e, por isso, me afastei.

̶ O que foi? Pode dizer agora?

Ela segurou o meu rosto com as duas mãos, olhando bem dentro dos meus olhos, e falou:

̶ Vi a minha vida. E não foi na sua mão apenas. Foi em você. Eu me enxerguei inteira em você. Isso me assustou muito, apesar da grande emoção que senti.

̶ Por favor, diga ao menos o seu nome. Só faço pensar em você.

̶ Esmeralda.

̶ Tem tudo a ver com seus olhos. Verdes e lindos.

- E você, é Sandro

̶Mas como...

Não terminei a pergunta, pois ela buscou meus lábios, suavemente. Um leve toque. Um carinho que se estendeu e se tornou profundo, libertando, finalmente, todo aquele desejo reprimido e tão adiado. Tomei sua mão e fomos saindo em direção à porta. Não queria perder mais um segundo.

Repentinamente, eu tornei a perdê-la entre os demais presentes. Retornei, quase correndo, à sala onde estávamos e o que vi me deixou estarrecido e completamente imóvel: na parede oposta à porta de entrada, bem centralizado, um enorme quadro com moldura verde brilhante que, posso jurar, não estava ali até há poucos minutos.

A imagem da tela, ainda mais linda do que antes, era a da mulher que agora há pouco eu tivera nos braços e pela qual estava loucamente apaixonado, sabendo ser correspondido.

Um senhor entrou, e vendo-me, assim, diante do quadro, tocou-me o ombro e perguntou:

̶ Ela é maravilhosa, não? Todos que a veem ficam deslumbrados, assim como eu. Por isso não pensei duas vezes e dei o maior lance quando ela foi a leilão. Sei que é só uma figura. Sei que já deve ter morrido há muitos e muitos anos, pois esse quadro fazia parte da coleção de peças de um castelo do século passado, onde viviam Esmeralda e seu amado Sandro, conforme explicaram no pregão, mas fico horas e horas, todos os dias, fitando-a, apaixonado, imaginando que, em algum momento, ela possa voltar à vida. Sei que é só uma ilusão, mas acredite, meu amigo, é o que me mantém vivo.

Quase

Eleni Nizu

O elevador avança, sem escalas, até o décimo primeiro. Ela sente diminuir, na mesma velocidade, a convicção de que deveria estar ali. Vasculha a cabine, busca uma câmera – quer saber se, além da sua consciência conservadora, alguém mais a observa. Se o porteiro já não a tivesse anunciado, talvez reconsiderasse o convite.

Frustra-se ao encontrar a porta fechada, nada amistosa, nem um sorriso à sua espera. Toca a campainha e aguarda alguns longos segundos. Ele a recebe, enfim, mais gentil que afetuoso. Embora se conheçam há um bom tempo, a iminência do envolvimento compromete a naturalidade de ambos. Sozinha desde a separação e motivada por grande curiosidade, acolheu com simpatia as investidas daquele homem que, afinal, desperta nela um raro e saudável interesse.

No apartamento, evidências da mudança recente. Tons sóbrios, poucos objetos, muitos livros. Discreto e masculino como seu consultório. Talvez um espumante tornasse o cenário mais acolhedor – pensa ela. Tenso, o anfitrião encontra alguma dificuldade em acionar o sofisticado sistema de som. Solidária, ela o socorre. A música e o brut bem que se esforçam para amenizar o constrangimento dos quase amigos que agora põem em risco essa condição, mas o senso de humor, tão inerente aos dois, simplesmente os abandona à própria sorte.

Cautelosos, aproximam-se. Os abraços não se encaixam. Insistem. Acostumada a vê-lo como um ser imaterial, alguém que beira o etéreo, ela agora comprova a volatilidade daquele homem tão fascinante – seu corpo não tem cheiro, seu beijo não tem gosto, suas mãos não têm paixão. Um som providencial interrompe o desconforto: chamam-no do hospital. Ele pede desculpas e, delicado, sugere que voltem a se encontrar. No sorriso mútuo, formal, o acordo tácito: quase estranhos.