O Bicho

Ana Beatriz Cabral


Pedro agitava-se no sono. A chuva continuava forte. Trovões ao longe se juntavam ao coro de vozes confusas. De repente, um estrondo. Levantou-se meio tonto. Desligou a TV e caminhava sonolento em direção ao quarto quando uma luz trêmula vinda da porta que levava à cozinha chamou sua atenção.

Levantou-se.

Com o único copo limpo na mão, abriu a porta da geladeira quase vazia para pegar a garrafa com água, quando a luz do eletrodoméstico projetou uma sombra disforme na parede. O susto o fez derrubar o copo. Virou-se com pavor, procurando um objeto qualquer para sua defesa, mas deteve-se quando viu, encolhido num canto da parede, um bicho molhado e escuro, que tremia. Já havia se virado em direção ao quarto, mas o olhar do estranho animal o seguia.

O animal, embora estivesse visivelmente assustado, não se movia, não tentava fugir. Acendeu a luz da cozinha para ver melhor. O longo pescoço apresentava um ferimento. Sangue e água formavam uma poça ao redor de seu corpo. Limpou o ferimento. Passou um pedaço de gaze ao redor do pescoço e prendeu com esparadrapo. O animal sequer esboçou alguma reação. Antes de apagar a luz, esmigalhou um pouco de pão dormido pelo chão, ao alcance do pássaro. Foi para a cama.

Pedro levantou num só pulo. Estava atrasado. O chefe já o tinha advertido de seus horários. Foi à cozinha tomar água. O pássaro já não estava mais lá.

Saiu com pressa, despencou escadaria abaixo. Chegou à garagem junto com o elevador. De dentro dele, saiu sua vizinha do final do corredor.

Apenas um aceno com a cabeça era suficiente. Deixou-a passar a frente no estreito corredor que levava aos carros estacionados.

Nesse momento, as chaves do carro que a moça balançava entre os dedos caíram com um barulho estridente. Adiantou-se para ajudá-la. Abaixaram juntos. Um tremor percorreu-lhe o corpo. Com o movimento, parte da echarpe de seda que cobria o pescoço da jovem deslizou para os ombros, deixando à mostra um pedaço de pele, onde a visão de um curativo feito com gaze e esparadrapo, ainda manchados de sangue, tirou sua respiração.

Devolveu as chaves sem conseguir tirar os olhos da moça. Ela disse obrigada e, após um silêncio que pareceu eterno, acrescentou: por tudo.

Um comentário:

  1. Parabéns!Gostei muito da criatividade no conto. Final com gosto de uma surpresa e quero mais!

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