O caderno


 Ramon Marlet

Hoje posso compartilhar segredos que estão marcados como tatuagem em meu corpo. No começo era muito tímido, mas tantas pessoas já me viram nu que nem sinto mais vergonha. Ainda mais agora que estou esquecido neste lugar escuro e apertado.

Já sofri os mais variados tipos de tortura: fui arremessado inúmeras vezes rumo ao desconhecido, ameaçado de extinção e enclausurado . Mas não guardo mágoas e muito menos rancores, apenas lembranças de um passado cheio de descobertas e felizes realizações.

Ser o fiel escudeiro de uma donzela em formação, como dizia seu pai, não era tarefa para qualquer um. Apesar de sempre oferecer caminhos lineares, me divertia quando Bia ignorava tudo e fazia as coisas do seu jeito, mesmo quando não tinha ciência de suas ações. O tempo foi passando e, de tanto que insisti, minha melhor amiga acabou aceitando minhas sugestões. Até o seu toque foi ficando mais leve, suave e preciso.

Mas veio a adolescência e junto com ela uma ira irreconhecível. Aquela não era mais a Bia que eu conhecia. Me jogava como se fosse um estranho ao chegar em seu quarto, e estava sempre acompanhada por um pequeno aparelho cheio de teclas e luzes, além de suas amigas. Como já ouvira tantas vezes de sua própria boca, por que precisar de um caderno velho quando se tem boas companhias e tecnologia?

Mas o pior ainda estava por vir. Fui condenado, exilado e obrigado a permanecer em silêncio, trancado em uma velha caixa de papelão com vários outros companheiros de jornada. Todos com desejos de vingança em seus corações. Menos eu.

Sei que sempre viverei de lembranças e, acredite Bia, são as mais puras e confortantes de todas. Sou extremamente orgulhoso por tudo o que já passamos juntos. Mas gostaria de pedir a você um favor, juro que o último. Eu ainda posso fazer o que você quiser e sempre farei, mas, pelos velhos e bons tempos, imploro que não me deixe aqui esquecido ouvindo os seus cliques, nesse canto qualquer. 

Um comentário:

  1. Muito bonito. Toca em um ponto atual, em que as pessoas privilegiam a tecnologia, e o instantâneo, e esquecem do simples mas duradouro. Não podemos mais ignorar e viver sem a tecnologia. Mas, precisamos valorizar o contato pessoal nas relações e o prazer que as coisas simples, como escrever em uma folha de papel, representam.

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