Empire State



 Dani Mansur

Como sentia falta de Pia! Na verdade, pensava nela o tempo todo, mas enquanto mastigava aquele pedaço de pão seco e tomava aquele café aguado – céus, como esses americanos conseguiam estragar uma bebida maravilhosa como o café? – a saudade chegava a doer fisicamente. Eu tinha muito viva a imagem da esposa ao acordar, ainda de roupa de dormir, os olhos imensos e negros, inchados de sono, os cabelos negros meio despenteados, os lábios carnudos, ela preparando o desjejum de ambos, enquanto o sol nascia. Ela acordava invariavelmente alegre, falando muito alto, a voz firme, dando ordens para o vento, tentando trazer um pouco de ânimo àquele que já não o encontrava em canto algum. A cena estava tão viva, que nem parecia que já havia se passado dois anos desde a última vez que a presenciou pela última vez.

Dois anos atrás ele partira da sua Itália natal, do porto de Civittavecchia, para uma grande aventura: tentar a vida na América. Estava casado há poucos meses quando a decisão foi tomada pelo casal. Na verdade, todos os seus conhecidos e amigos estavam partindo rumo ao novo mundo, não numa busca por um sonho, mas numa fuga desesperada da vida miserável que ali estavam levando. Não havia trabalho, comida, dinheiro ou esperança suficientes para a multidão de desesperados que se amontoavam pelas ruas das cidades. O porto e os navios rumo à América eram a única saída naquele momento. Ele tinha uma linda esposa, queria enchê-la de filhos, queria uma casa barulhenta, com cheiro de café quente. Não suportava mais olhar Pia nos olhos e dizer a ela que não havia conseguido trabalho.

Seu primo Toni mandara notícias desde os EUA, contara que estavam construindo por lá o edifício mais alto do mundo. Segundo soube, precisavam de muita gente pra botar a mão na massa, estavam contratando muitas pessoas e o critério era que não temessem o trabalho duro. Paolo tinha tanto apreço pelo trabalho, fosse qual fosse, que chegava a sonhar que estava assentando tijolos durante toda a noite e acordava cansado e satisfeito.  Depois de longas conversas entre ele e Pia, muitas lágrimas, muitos medos e sonhos verbalizados, decidiram que ele iria. Decisão dolorosa e corajosa para ambos. Se tudo desse certo, se houvesse trabalho e salário, se houvesse esperança na América, Pia partiria em seguida. Eles não confiavam mais na Itália.

Com a bagagem composta de duas trocas de roupa, um papel com o endereço de Toni e uma foto tirada no dia do casamento, ele desembarcou no porto de Nova Iorque. Rapidamente começou a trabalhar na obra, da qual ele já sabia até o nome: Empire State Building, o prédio mais alto dos EUA e talvez do mundo. Nunca em sua vida tinha visto tanta gente num único canteiro de obras: eram estrangeiros de toda parte, especialmente europeus derrotados na guerra. Mas havia também índios, canadenses, sul americanos e muitos americanos nativos.

À medida que a convivência os aproximava, ficava claro que as pessoas de diferentes origem, idioma e criação terminavam por ser todos iguais. Havia um sentimento predominante entre todos os trabalhadores: gratidão imensa por ter um trabalho. Todos estavam cientes da situação crítica “lá fora”, que era como eles chamavam a vida fora da grande obra de engenharia. Todos sabiam das notícias de fome, desemprego, desespero e desamparo. Por esse motivo, trabalhar 16 horas por dia não chegava a ser um problema e a exaustão completa do corpo ajudava a aliviar a dor da saudades de casa, das esposas, dos filhos, dos aromas da terra deixada pra trás.

A solidão os uniu em vários grupos: os italianos, os poloneses, os alemães, os índios. O idioma os trazia, de certa forma, de volta à casa. Tornaram-se família, passavam o dia juntos, trabalhando juntos, falavam de seus sonhos e de suas expectativas. Contavam milhares de vezes a mesma história de vida, como lá foram parar, onde estavam as esposas, quantos filhos tinham, falando longamente e afetuosamente de cada um deles, deixando lágrimas traiçoeiras escaparem de quando em vez. Juntos, ainda reclamavam da comida americana, do vento frio da cidade, da relação de amor e ódio com o país que os acolhera. A maioria narrava em detalhes o modo como se daria sua volta à cidade natal e uns poucos, como ele, diziam querer ficar.

As notícias de tudo e todos que haviam deixado pra trás chegavam com as cartas, eram milhares delas distribuídas todos os dias. Cartas que eram lidas, relidas e compartilhadas dezenas de vezes, cartas que alimentavam as almas daqueles trabalhadores. Traziam notícias de mortes, de nascimentos, de doenças, de saudades, notícias das vidas que seguiam longe dali. Naquele dia, gritaram que havia carta de Pia.

A última carta que Paolo recebera lhe fora entregue há um mês. Fora uma carta decisiva, menos romântica que todas as anteriores, porém seu conteúdo o deixou sem dormir por noites seguidas. Sua esposa dizia que estava disposta e animada para embarcar, queria deixar a Itália pra trás, dizia que que não havia mais motivos pra viver do outro lado do mundo. Agora que ele tinha um trabalho, um cantinho onde dormir e uma esperança crescente de que a vida poderia voltar a ser bela, ela queria estar com ele e nunca mais se separariam. 

Por esse motivo, quando anunciaram que havia uma nova carta, seu corpo inteiro estremeceu, sua vista ficou escura e os pensamentos ficaram confusos. Quando conseguiu tocar o envelope que o rapazinho do serviço postal estendia em sua direção, não conseguiu mais respirar, tropegamente dirigiu-se até o andar mais alto do edifício, que era para onde Paolo costumava ir quando queria isolar-se de tudo e todos, sentou-se sobre uma das vigas, lá no topo do mundo e rasgou os papéis, sem cuidado, arrancou dali um papel amarelado onde enxergou a linda letra de Pia, letra bordada que ele sempre admirou e no meio daquela barulheira infernal da obra a todo vapor, conseguiu ouvir a voz de Pia sussurrando o que ali estava escrito: Mi aspetta amore, sto arrivando.

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