O rapaz da venda



Fernanda Handke dos Santos

Foi minha psicóloga quem primeiro me incentivou a voltar a trabalhar. Mas relutei. Eu que não precisava de trabalho para me recuperar da depressão, precisava era de respostas, saber quem matou minha irmã, por que fez isso, e ver o assassino pagando pela maldade. Isso, porém, ninguém podia me dar. A perícia só sabia repetir não havia qualquer sinal de arrombamento ou da presença de outros no apartamento onde, sozinha, minha irmã morava. No entanto, ela foi encontrada morta a facadas nas costas, caída de bruços sobre a cama ensanguentada. E eu não suportei tamanha dor, me afastei dos nossos pais e abandonei o trabalho. A Deise, minha amiga de infância, foi a única que me procurou nesse tempo, que incansavelmente me visitava, levando comida e paciência até que eu me recuperasse. Também foi ela que, depois de seis meses, concordou com a minha psicóloga e me indicou a uma vaga de recepcionista na mesma empresa em que trabalhava como secretária. Por insistência dela, principalmente, foi que aceitei aquele emprego.

Ficava perto da minha casa, de forma que eu podia ir e voltar a pé. Assim, em uma semana, me habituei ao caminho e já conseguia subir a rua íngreme com certa resistência. Dobrava a esquina, caminhava mais alguns metros e chegava na empresa. Para voltar no final do dia, o caminho era o mesmo, mas com o benefício da descida. Uma vez que a rotina havia se estabelecido, aquilo começou a me dar certa segurança e até a me restituir, ainda que um pouco, a alegria perdida. Mas quando, finalmente, consegui reconhecer o quão bem Deise havia me feito, quase que me obrigando a voltar ao mercado de trabalho, ele apareceu pela primeira vez.

Com um olhar de águia em ataque, direto e certeiro, o rapaz passou a me observar toda vez que eu passava em frente à venda, voltando para casa. E, mesmo que eu passasse pelo outro lado da rua, no momento que eu virava a esquina, ele imediatamente parava de arrumar as frutas, se colocava ereto e me acompanhava com aqueles olhos negros. Não estava interessado em mim, como alguém poderia pensar. Sua expressão não mudava, não havia qualquer sorriso, piscada ou sequer um levantar de sobrancelha. Eu esperava, embora um pouco assustada, que após alguns dias ele parasse de agir daquela maneira. “O que ele quer comigo?”, eu pensava. “Será que o conheci alguma vez e não estou lembrando?”, “Será que ele conhecia minha irmã e quer me dizer algo?”, ou ainda, “Vai ver que tem problemas mentais, e eu estou aqui me preocupando à toa.”. Enquanto fazia minhas considerações, decidi que, no próximo dia, entraria na venda e compraria algo para ver qual seria a reação do sujeito. Saí determinada do serviço naquele final de tarde, dobrei a esquina e me dirigia ao mercadinho quando o rapaz, ainda com aquela expressão de seriedade inalterada, vagarosamente levantou a mão direita até o pescoço e simulou o seu corte com o dedo indicador. Eu gelei, minhas pernas estacaram e perdi todo o interesse de tirar a história a limpo naquele momento. Quando voltei a mim, corri apavorada para casa e lá me tranquei.

Aguardei apenas tempo suficiente para que Deise saísse do trabalho e, tomada de nervosismo, telefonei para ela. A última coisa que eu queria era sobrecarregá-la ainda mais com problemas, contudo, naquele instante, meus dedos discaram seu número quase que automaticamente. Como esperado, minha amiga atendeu a ligação de forma muito afetuosa e nem mesmo deixou que eu me desculpasse por tê-la telefonado tão cedo. Era uma mulher doce e, com palavras suaves, conseguiu me acalmar enquanto perguntava o que tinha acontecido. Entre um soluço e outro, descrevi então tudo o que vinha ocorrendo e como aquela repentina ameaça havia me feito lembrar da horrível morte de minha irmã. Deise ouviu tudo sem se demonstrar intimidada, considerou algumas possibilidades e acabou concluindo que o melhor seria descermos a rua juntas no dia seguinte, em companhia de um colega de trabalho que era muito seu amigo e, portanto, não negaria o favor. A certeza desse amparo incondicional proporcionado por Deise foi o que me tranquilizou naquela noite. Concordei sem reservas com sua sugestão e, aliviada, desliguei o telefone, agradecendo-a imensamente.

No outro dia, como combinado, minha amiga e eu esperamos o Alex sair. Ele era um homem forte, trabalhava no setor de expedição da empresa, e tinha uma voz grave que, certamente, imporia algum respeito no rapaz da venda, mesmo que ele só o cumprimentasse. Eu estava bem mais confiante com os dois do meu lado, pronta para descer a rua.

– Bom, mas ele não é muito grande, né? – brincava Alex antes de dobrar a esquina.

– Haha, não é não – respondi. – É até bem magrinho, mas como eu estava sozinha...

– Hoje a gente resolve isso, garota. Pode deixar que vou lá tirar satisfações! Onde já se viu um marmanjo desses ficar ameaçando as moças.

– Obrigada, gente. Muito obrigada.

Ainda da esquina, apontei para o rapaz, que colocava-se a postos e, sem rodeios, pousava o olhar em mim:

– É aquele.

– Qual? – perguntou Alex.

– Aquele. Vamos descer mais um pouco e vocês vão ver. Ele está ali em pé, do lado das maçãs.
Deise espichava o pescoço, tentando encontrar o rapaz:

– Onde, querida?

– Ali, ó – eu apontava com discrição. – O desgraçado está me cuidando como das outras vezes. Ai, que horror!

– Calma, garota. Vamos fazer o seguinte, a gente para na frente da venda, vocês duas ficam desse lado da rua e eu vou lá falar com ele, ok?

– Sim – respondeu Deise.

– Sim – arrematei.
Com a segurança provinda da firmeza e da tranquilidade de Alex, tive coragem de parar com eles bem na frente do mercadinho, embora do outro lado da rua. No entanto, o rapaz agia assustadoramente como de costume, sem sequer disfarçar o olhar.

– Ele entrou? – Alex me perguntou.

– Como assim? Ele está ali, bem na nossa frente, nas frutas!

– Querida, onde exatamente? Não tem ninguém na venda, só a moça do balcão – disse Deise.

– Não, não é a moça do balcão! É esse cara aí, esse me olhando que nem um louco! Ai, gente, estou com medo, ele vai me ameaçar de novo! Alex, por favor, vai lá!
Alex e Deise se entreolharam preocupados e assim ficaram algum tempo, sem ação. Pedindo que esperássemos por ele, meu colega foi até o balcão da venda, e Deise ficou me acalmando, dizendo para eu não olhar em direção ao estabelecimento, mas para ela, até que o Alex retornasse.

Quando saiu do mercadinho, ele veio calmamente até mim e, com o olhar voltado para o chão, disse:

– Luiza, eu conversei com a moça do balcão, mas... mas não tem nenhum rapaz trabalhando ali na venda. Só o marido dela que vem pela manhã, monta as bancas aqui da frente, mas vai embora de manhã mesmo.

Enquanto eu tentava entender aquela situação e o olhar de pena que Deise dirigia a mim, Alex falou com tom de voz baixo e sério:

– Bom, garotas... eu acho que não tenho muito mais o que fazer aqui...

– Sim, Alex. Obrigada pela ajuda, mas pode ir agora... eu vou acompanhar Luiza até em casa para conversarmos melhor. – Deise se despediu dele por nós duas.

Chegamos caladas na minha casa; eu por ainda estar tentando entender o que tinha acontecido, e Deise por não saber como iniciar o assunto. Ambas sentamos no sofá, Deise segurando minha mão.

– Desculpa, Deise, desculpa – mal terminei de falar e comecei a chorar.

– Calma, querida. Talvez seja efeito colateral dos remédios – a expressão de Deise não a deixava esconder o pesar.

– Mas como? Como? Ele estava lá, mesmo hoje, ele estava lá!

– Minha flor, nós vamos descobrir o que está acontecendo. Você passou por um trauma terrível e tem sido uma guerreira até agora. Você vai vencer isso também, tenho certeza. Você... você entende que o rapaz não era real, né?

– Ele estava ali, Deise, tenho certeza de que estava...

– Querida, eu quero te ajudar, e provavelmente seja algo simples de se resolver se consultarmos um médico. Mas você precisa aceitar a realidade primeiro... esse rapaz não existe, não é real. Você consegue entender isso, minha flor?

– Eu devo estar louca, Deise. Não tem solução para a loucura.

– Você não está louca, por favor não fale uma besteira dessas!

– Deise, vá para casa. Eu preciso ficar sozinha, preciso pensar na minha vida.

– Como que eu vou deixar você aqui nessa situação?

– Estou falando sério, amiga. Eu quero ficar sozinha. – Levantei-me para abrir a porta.

– Mas...

– Por favor. – Eu insisti com firmeza e com a porta aberta.

Deise saiu contrariada da minha casa naquela noite, pedindo que a telefonasse assim que possível, entretanto, eu realmente precisava ficar sozinha. Voltei para o sofá e chorei toda a tristeza e toda a frustração que há tempos me consumiam. Pensei, repensei em tudo o que tinha acontecido, bem como nas palavras da Deise, e, com muito custo, aceitei o fato de que eu não estava bem. De alguma forma, eu estava tendo visões, estava delirando, e tinha de lidar com isso. Pela minha irmã, que fazia tantos planos quando teve a vida roubada com tamanha covardia, eu lutaria corajosamente e viveria por nós duas. Do mais íntimo do meu ser, resgatei a força suficiente para procurar por psiquiatras no livro do meu plano de saúde e agendei uma consulta, que deveria ocorrer no dia seguinte.

Já era tarde da noite e, como eu não tinha mais capacidade de pensar em qualquer outra coisa, resolvi que tentaria dormir. “Louca”, pensei, “Se tenho visões durante o dia, talvez eu veja a realidade enquanto durmo”. Quando, porém, me dirigi ao quarto e acendi a luz para me trocar, notei que havia algo estranho sobre o travesseiro, algo como um papel dobrado. Aproximei-me apreensiva e, de pé em frente à cama, abri vagarosamente o bilhete, sem, contudo, ter tempo de compreender o quanto aquela pergunta escrita a lápis seria definitiva: “Quem define o que é real?”.

E senti uma punhalada nas costas.

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