Crime Passional no Beco das Ilusões

Márcio Furrier

Da sucursal: Helena Dias da Silva, 35, foi morta a tiros no Beco das Ilusões na madrugada de ontem, por volta das duas horas da manhã. Testemunhas ouvidas pela Polícia contaram ter presenciado uma discussão entre o casal, que culminou com dois disparos efetuados à queima roupa por um homem ainda não identificado, que fugiu em seguida. Levada à Casa de Misericórdia, Helena não resistiu aos ferimentos. O caso foi entregue ao 5.o Distrito Policial de Aflitos, cujo delegado, Roberto Miranda, encarrega-se das investigações e promete a divulgação de um retrato-falado para o dia de hoje. A suspeita é de crime passional, uma vez que nada foi roubado, segundo o investigador que atendeu a ocorrência.

***

Ocorrência comum, infelizmente. Não aguento mais esta vida de investigador, dias e dias remexendo o lixo. Chamado da central, duas da manhã, homicídio. Aquele psicopata devia ter muito ódio da moça. Dois tiros à queima roupa no meio da rua escura, sem chance de defesa. Mulher ainda bonita, seus 35 anos, estirada no meio fio com muito sangue escorrendo, duas perfurações de bala no peito, os cartuchos deflagrados logo ao lado, calibre 38. Nada foi roubado. Segundo a testemunha, o assassino saiu correndo após os tiros, sem maiores cuidados com a cena do crime ou com a possibilidade de reconhecimento. A descrição é de um tipo comum, retrato-falado padrão. Crime passional com certeza, possivelmente causado por ciúmes. Mais um dia para esquecer.

***

Esquecer a cena, impossível. A mulher exaltada tentava impor-se ao impassível sujeito de forma quase teatral, seu choro atropelando as palavras. Cena relativamente comum naquele pedaço, mas sempre incômoda. Por via das dúvidas, apressei o passo ao cheiro de confusão. Só olhei para trás quando, do nada, ouvi dois disparos. O homem, revólver em punho, saiu correndo sem olhar para trás. Voltei e vi a mulher, praticamente sem vida. Acionei o socorro por obrigação. Estranho, pareceu-me quase um sorriso em seu rosto.

***

Seu rosto não deixava dúvidas, o momento da decisão se aproximava. Após a milésima negativa, novamente ela elencava suas razões. Implorava por uma ação definitiva; não resistiria ao tratamento, à perda dos cabelos e da autoestima, não suportaria as despedidas em pílulas diárias. Eu, perdido em seus olhos puros e suplicantes. Aos poucos, foram vencendo minha fortaleza. Amava demais aquela mulher para vê-la sofrendo. Ao passar o último transeunte, ela se calou, pressentindo que tinha vencido. Adeus, meu amor, te amo.

***

Te amo, mãe, esteja onde estiver. Saiba que, ao ler este bilhete, já terei deixado este mundo, porque não suporto mais sofrer e te ver sofrer. Estava muito doente mãe, não tinha como resolver, o doutor disse. Não culpe o Antônio; ele fez o que fez porque pedi muito, foi uma grande prova de amor. Não o denuncie. Pais não devem ver os filhos sofrer, então tome isso como o melhor que pude fazer para poupá-la de uma despedida lenta e dolorida. Para sempre sua filha amada, Helena.

Domingo no Parque

Alexandre Braoios

José. Feirante. Típico “cara do bem”. Simpático e bonachão. Domingo era seu dia de descer ao inferno. Madrugava. Enfrentava o sol. Maldizia não poder ir mais cedo ao parque.

João. Amigo de José. Pedreiro. Exatamente o oposto de José. Domingo era dia de subir ao céu. Por um dia deixava as encrencas e o mal humor. Ia cedo para o parque, paquerava todas as meninas. Mas tinha sua preferida.

Juliana. Menina moça. Criada para casar. Morava na roça. Vida dura, mas feliz. Romântica. Dividida entre a simpatia de José e a masculinidade de João.

Já passava das duas horas. José chegou ao parque e seus olhos, rapidamente, correram todos os rostos. Avistou Juliana de braço dado com João na fila da roda gigante.

Juliana e João dividiam o mesmo sorvete de morango. Puro pretexto para um beijo indireto. Sentaram-se e a roda girou. Sorrisos, abraços e a enorme rosa na mão de Juliana. Como se fossem dardos, os espinhos cravejaram de modo certeiro o alvo. O peito ofegante de José. Por um instante os tons de vermelho se fundiram. A rosa, o sorvete, o batom. E o vermelho tingiu seus olhos.

Juntou os tons. Faca desembainhada. Três passos, uma estocada. De Juliana, mais um tom de vermelho brotou e ajudou a compor a tela sombria. Rosa. Sorvete. Batom. Sangue.

Jeremias, um maconheiro sem vergonha que passava por ali, em vão tentou segurar José. Mais uma estocada. Mais um tom. Vermelho muito escuro. João tombou.

Jaziam juntos. Já era tarde. José de joelhos. Faca na mão. Sangue na alma. Nesse domingo José virou João. João foi José. E Juliana, sempre Juliana, vislumbrou como um raio o fim dos domingos, que anunciavam sempre mudanças. A roda parou de girar.

Rotina Inesperada

Jailson Luiz Jablonski

Meu escolar é o único que passa na Vila das Flores recolhendo os alunos e levando os para a escola. Com isso, eu sou o motorista mais feliz da cidade de Roseiral, pois sou eu que levo esperança para o Brasil, que é o nome da escola dos estudantes.

A Vila das Flores é um pequeno lugar no interior de Roseiral, onde moram poucos habitantes. Lá ouvimos os rouxinóis cantando logo após o sol nascer e também as risadas das crianças brincando nas ruas. Quando chove, escutamos os pingos que batem nos nossos telhados, sentimos o cheiro de terra molhada, sentimos o cheiro das flores que enfeitam os canteiros da Vila e, ainda, sentimos toda a paz que é transmitida pelos seus habitantes. Na verdade, somos sensitivos.

Era uma manhã de inverno como outra qualquer, gelada. Acordei cedo e fui ao banheiro. Quando entrei na cozinha, senti o cheiro de café que minha esposa fazia. Tomei meu café. Fui até a garagem onde estava o meio de transporte com o qual eu trabalho: o escolar. Abri a porta e entrei. Na primeira tentativa de ligar, o escolar não funcionou. Estranhei. Somente na segunda ou na terceira tentativa ele trabalhou normalmente. Fiquei apreensivo, mas fui buscar as crianças porque eu devia levá-las para a escola.

Em cada esquina que eu passava, parava o ônibus. Abria a porta. Cumprimentava cada criança com um sorriso e elas, cada uma de sua maneira, abria um sorriso e retornava o cumprimento. Apesar disso, eu ainda estava nervoso com o problema que havia no escolar.

Dentro do microônibus as crianças estavam felizes. Umas cantando, outras conversando e outras olhando a paisagem que uma manhã de inverno proporciona, aquela fumaça subindo ao céu, enquanto o sol toca o verde esbranquiçado por causa da geada. Lindo. Mas nem todos estavam felizes. Notei que havia um menino com uma face preocupada, pensativa, parecia estar com o pensamento muito longe. Bem longe.

No caminho para a escola, nós tínhamos que passar por uma ponte de um rio grande e largo. As crianças não gostavam daquela passagem e nem eu. Chegando perto da ponte senti um frio na barriga e, no momento em que estávamos passando pela ponte, caímos no rio. Não recordo como, só lembro que quando eu saí da água, já na beira, vi o microônibus afundar. Nesse momento olhei para a água e vi o menino, aquele do pensamento longe, mergulhando para salvar os seus amigos.

Mergulhou uma vez e trouxe Camila para a beira do rio. Eu ajudei ela a sair da água. Mergulhou de novo e voltou com o Pedro. Depois, com o Carlos. Em seguida trouxe a Leila. E eu na beira do rio sem poder fazer nada, pois não sei nadar, eu só observava aquele menino retirando as crianças da água. Um ato heroico.

Ele mergulhou de novo, as borbulhas subiram, a água se mexeu, mas ele não voltou. De repente as borbulhas e a água pararam, o rio se acalmou e parecia que nada tinha acontecido. Num piscar de olhos o corpo sobe, sem vida, sem cor, sem ar. Sim. O menino que não brincou, não cantou no ônibus hoje cedo e salvou aquelas crianças estava morto.

Da loucura

Marcio Furrier


Ah...
O dom da quixotice!
Ser vente, ser vante,
Do ideal servido e servidor
Tresloucado, transfigurante.

Brasil, culpas, Braz Cubas
Macunaíma rico e sincero,
O fracasso do porvir,
Desdenhando do fim funéreo.

Poesia-teatro de apaixonados
De Bergerac, Cyrano inspirado.
Amor sem limites, visto de baixo
Ou de cima do penacho.

E todos nós, na luta banal,
Morte e vida severina,
Aguando a seca de fé fraternal,
Perdidos e mal pagos,
Num poema de João Cabral.

Sonhadores temos poucos,
Sãos, demasiado,
Fantasias são para loucos,
Para o resto, resta o fado.