João e Maria

Uma bela e surpreendente história inspirada na canção João e Maria, de Chico Buarque.

Érika Gentile



- Vem aqui comigo, me dá a mão. – Olhos negros e amendoados, sem camisa, contra o céu azul, João estendia insistente os braços em minha direção. Estávamos no ponto mais alto da cidade e de lá podíamos ver tudo. Os prédios, as casas, as ruas, avenidas, viadutos, as áreas de reserva ambiental, os luxuosos condomínios, os hospitais, favelas, a prefeitura. Tudo pequenino e longe, e João, assim de costas para o céu, parecia um gigante.  Ri enquanto observava o peito sem pelos de João e o vento sacudindo os cachos pretos de seus cabelos.

- Tenho medo de cair - resmunguei – Está ventando muito! – estiquei os braços para João, meus cabelos curtos também despenteados pelo vento forte. Eu vestia uma camiseta de propaganda política e um short rasgado que um dia fora uma calça jeans. Minha pele queimada do sol e algumas sardas espalhadas no meu rosto denunciavam minha meninice.

João inquietou-se:

- Não confia em mim? – gritou abrindo os braços contra o horizonte, agigantando-se ainda mais.

- Não! Ontem mesmo você esteve com outras três, por que eu confiaria?

- Porque eu trouxe você hoje!  Porque este é o meu lugar. O lugar mais bonito da cidade, e só estamos nós dois aqui, onde eu sou rei, sou dono, sou autoridade. Aqui quem manda sou eu, e eu escolhi você para estar aqui comigo, só nós! Somos os donos, entendeu? Você pode fazer o que quiser aqui! Pode tirar a roupa, pode cantar bem alto, dançar até se quebrar. Você pode ser você.  É nosso reino. Aqui mandamos nós!

 Apertei com força a mão de João, firmei as pernas e aceitei o impulso, chegando finalmente ao topo:

 - Que bom que eu vim! - disse enquanto olhava o sol descendo por detrás da cidade que se tingia de laranjas, amarelos e dourados.

Ao longe, revoadas de pássaros desfilavam em cantoria, ilustrando o céu com uma coreografia perfeita. O vento mexia nos cachos de João e desejei ter cabelos longos para também vê-los voar. Uma lágrima teimosa escorreu pela minha face e João a secou com um beijo.

Ficamos assim, entrelaçados, naquele infinito tempo de encantamento, enquanto o sol cerrava as cortinas.  Deixei João apertar minhas mãos e durante todo o espetáculo nos permitimos ser exatamente o que um representava para o outro. Nada de dor ou de medo. Nada de dúvidas e sobressaltos. Apenas a voz de João contando as grandezas que planejava para a gente, as palavras se instalando no céu, desenhando um futuro que nunca chegava.

Depois do sol a noite chegou rapidamente, sem luar, apenas umas estrelas distantes, um pouco encobertas por nuvens. Aos nossos pés a cidade brilhava em infinitas luzes. Uma cigarra solitária insistia em cantar, e o espetáculo era ainda mais belo. João passou a mão pelos meus cabelos, beijou minha boca, os dedos dele percorrendo meu peito, aninhou-se em meu colo, protegido, sonhador.

  – Podia ser sempre assim! – solucei. Mas João pediu silêncio, inebriado com o nosso cheiro, com a paz daquele momento.  Então restamos um para o outro, como se o mundo fosse possível e aquele vago instante não fosse apenas um intervalo.

Fui furtando com cuidado cada pequeno detalhe daquele cenário sem dor. Gravei as mãos de João se misturando com a minha, seus pés estendidos para o horizonte, apontando o infinito. O outdoor que anunciava um novo empreendimento imobiliário, três grandes pedras estampando uma estranha geografia, ora parecendo um grande cão, ora uma poltrona, ora apenas três pedras. A vegetação rasteira às vezes sorria com uma flor improvável, e o azul marinho do céu ia dando lugar a uma noite densa, vestida de gala e austeridade. As palavras trocadas entre os carinhos ainda rasgavam a minha pele.

- Por que você não é uma menina? - João chorou como se fosse minha escolha, e não apenas o que eu era de fato.

- Se eu fosse você não me queria – sussurrei em prantos, mas João calou meus lábios, pois não podia ouvir.

Quando finalmente a noite firmou-se, dei as costas aos sonhos, desci o morro chorando, meus pés descalços sendo cortados pela sujeira dos terrenos baldios. Corri em direção à favela, o peito pesado de dor, uma mágoa profunda com a minha sorte e aquela vida sem promessas. Ainda ouvi João gritar, desesperado por não poder seguir adiante. Não me voltei.

Em desabalada carreira, retornei a vida real, onde eu jamais seria Maria.

A Menina que paria pássaros

Uma doce e poética narrativa do moçambicano Noordyne Mussa, participante de nossa oficina. Neologismos como "se sozinhava" e um tom de realismo mágico representam bem a estética da literatura luso-africana, que tem Mia Couto como seu expoente maior.


Um dia, ela foi vista na varanda dos seus aposentos – sem burca. O expressivo rosto de olhos verdes denunciava sua tristeza. Abiba ouvia de longe a felicidade das primas já casadas, mas ela ainda se sozinhava. Essa exclusão tingia o espelho da sua alma com a ânsia da esperança.

Um casal vivia numa remota aldeia e não se misturavam com outras raças. E com o problema da guerra civil, ficou complicado viajar e estabelecer contactos para prepectuarem a sua raça. Quando a guerra acabou, a esperança renasceu nos corações da família.

O casal tinha uma filha – Abiba. Ela não ia à escola porque todos, incluido os professores viviam nas palhotas de barro e capim. E a escola era debaixo duma árvore. Os alunos, sentados na areia cheia de matequenhas . Abiba cresceu gradeada dentro de casa – aprendendo o comércio da família. A menina tinha vestes de variadas cores, excepto a preta, embora o seu cabelo fosse preto. Quando ela via a cor preta, imaginava o sujo de um cadáver e se sentia nauseada. A menina crescia, a curiosidade nela também e os pais ficavam cada vez mais impossibilitados de correspondê-la. Ela não entendia a escuridão da noite e até dormia acordada como o coelho, porque o sono também era escuro. E a fome era tanta… Nem vacas. Nem gazelas. Os animais, sumidos com a guerrilha. Um dia, a menina perguntou à sua mãe, porque não comiam o cão:

- A carne de cão é preta.

Abdul não quis saber mais. Ultimamente, a sua filha Abiba andava esquisita – já falava de amor e paixão. Aquelas palavras eram proibidas para raparigas da sua idade. Várias vezes, Abiba fora avistada com um rapaz albino, o único que para ela era branco – assim como a noite e o dia. E a mãe, assustada, indagou-lhe onde ela aprendera a palavra loiro. A miúda calou, mas tinha alguma coisa lhe minhocando na cabeça. Fábio tinha pele branca e portanto, como a mãe lhe ensinara outrora, ele era branco. Mas a mãe da Abiba frisou mais uma vez, sua repugnância em relação ao albinismo:

- Rochas nascem rochas.

Abiba ficou com a ideia que a raça de Fábio era uma doença contagiosa. Ela foi proibida de sair para a rua. Um dia, acesa de fogos, Abiba enganou os guardas e fugiu – algo estranho lhe movia dentro do seu peito adolescente. Pouco depois, ela e o Fábio foram encontrados com os seus pais, sentados num banco do parque. Em casa, cada pai reprimiu seu filho. E disse a mãe de Fábio:

- Nós somos a última raça depois dos índios.

Raça perseguida nos últimos tempos e em extinção devido à superstição – as pessoas eram caçadas e mortas para gerar riqueza. E se Fábio se metesse com Abiba, traria azar para a família dela e os pais não estavam dispostos às consequências. Os pais da Abiba conversaram os derradeiros planos devido à desobediência dela. O senhor Abdul, já tinha decidido:

- Vamos colocar expulsamento nela.

- Expulsá-la?

Não. Um pássaro para lhe guardar. Naquela zona havia um medicamento tradicional que os pais usavam para proteger suas filhas contra a gravidez precoce, bem como o relacionamento com pessoas erradas. No dia seguinte, Abiba tomou o medicamento sem notar, estava dissolvido na sua adorada sopa. Só que os pais não sabiam que aquele medicamento, também era afrodisíaco – um efeito secundário que dava comichão nas bundas, nos pés e obrigava à prática de nudismo: Abiba já não parava em casa.

Ela passou a ser vista com saias curtas e calções jeans apertadíssimos. Mas Fábio já se tinha ido embora – destinado ao externato, situado a uma longa distância dali. Dada a gravidade do problema, os pais da Abiba arranjaram um noivo para ela. Um alguém da mesma cor – um homem trinta anos mais velho que ela. Era tradição da família. Abiba foi casada.

Então, no dia das núpsias, os dois já na cama, o guarda surgiu – um pássaro saiu voando dentre as pernas abertas da Abiba, estragando todo clima do casal. Alarmado, o homem apanhou um enfarte e caiu, morto. Ela ficou sozinha. E assim foram os restantes dias da Abiba.

Nenhum lúcido a queria como esposa, ficou famosa por parir pássaros e matar homens. Para contrariar, era assim a sua miserável vida: se maquiava e pousava ali na varanda, sozinha e sorrindo às aves. As pessoas não entendiam aquela sua vaidade. Ela devia é chorar e tratar do seu sofrimento passarinhado. Os pais, preocupados, lhe indagaram o motivo da felicidade, e ela respondeu:

- Sou uma gaivota no alto mar.

Janelando, ela desfrutava, lá do céu, a esfericidade do planeta. Diferentemente das outras gaivotas, ela voava nocturnamente. Então deu-se que o corpo bem nutrido da Abiba desaparecia noite após noite. A palidez e o sofrimento, se gravavam no seu rosto. Ela inventara uma receita para dieta. Já não usava burca. Virou modelo, pousava para fotógrafos e assim aumentava a renda familiar, uma vez que o pai estava já muito velho, e o comércio não atravessava os melhores dias. Um dia, a mãe lhe pediu o segredo de voar. Abiba hesitou, mas depois disse:

- O voo é meu homem.

Os voos eram únicos que lhe podiam saciar a fome de sexo. E a mãe sabia dos casos com os voos. Mas o senhor Abdul, já não fazia voar a sua esposa. E a mãe queria ter o corpo da filha, leve, aerodinâmico, voando com a brisa do mar, passarelando a passarinho como Abiba. Então, a moça ilucidou a mãe de que o seu corpo era resultado de muitos voos, diferentes casos de voos – os velozes, os acrobáticos, incluindo a planagem.

Um dia, arrumarram-se e saíram. E foi sempre assim, o corpo da mãe dela passarinhava, mãe e filha pareciam irmãs. Como era possível emagrecer tão rápido assim? Abdul, desconfiado, seguiu-as escondido na escuridão das árvores das ruas, e chegaram no local – uma rua coberta de bares lado a lado, uma rua com gente cada vez mais parecida uma da outra. Lá, os pretos é que conduziam os voos. Abdul descobriu que a filha e a mulher eram prostitutas. Regressou à casa e suicidou-se.

Noordyne Mussa