Atirei o pau no gato


Juliana Dummel

Meu nome é João, João de Santo Cristo. Nasci no Natal de 97 e minha mãe me chamou João. Foi a enfermeira da sala de parto que quis colocar o Santo Cristo.

Mas minha vida começou de verdade no dia 26 de dezembro de 2002, o dia que atirei o pau no gato. É. Fui eu que atirei o pau no gato, o gato amarelo da Dona Chica.

Dona Chica é tia-avó da minha mãe, tem 85 anos, e mora na minha casa desde que seus 9 filhos foram para o nordeste trabalhar em uma temporada de corte de cana. Prometeram voltar em 5 meses, mas desde então não tivemos notícias. Foi Dona Chica quem me alimentou até os 5 anos de idade. Depois disto, além de comida me deu um bocado de instrução.

Minha mãe é faxineira no Hospital Geral do Exército do Rio de Janeiro e com este trabalho sustenta a família que somos eu, ela, Dona Chica e o gato. Minha mãe trabalha todos os dias da semana. Quando não está no seu horário, está cumprindo o serviço de colegas. O que mais lhe rende é tirar o serviço dos feriados, Natal e ano-novo são os mais caros. E minha mãe sempre aceita trabalhar, pelo dinheiro.

No meu primeiro aniversário ela estava de serviço. No segundo, no terceiro e no quarto ela tirou o serviço de colegas e recebeu um dinheiro que valia a pena. Quando completei 5 anos ela estava em casa, mas desejei que  estivesse. Ela fez faxina em casa e xingou a Dona Chica de “porca imunda” vinte e nove vezes. E ninguém lembrou do Natal e nem do aniversário.

O dever de Dona Chica era não me deixar com fome.  Minha mãe deixava a comida preparada e ela colocava o prato para mim.  O resto do tempo ela gastava sentada em sua poltrona de chenille, em frente à televisão, acariciando o gato amarelo.

O meu dever era sentar ao lado da Dona Chica, no meu banquinho de madeira, e me comportar. Comportar-se  significava não derrubar nem um único grão de arroz na mesa, não me arrastar no chão para não ficar com pelo de gato na roupa, não falar para não atrapalhar o  programa de televisão, não espiar pela janela e não judiar do gato. Caso houvesse alguma falha na minha conduta, Dona Chica alertava com sua alta e grossa voz: “Menino malcriado, olha a porquice na mesa!”, “Menino malcriado, cala essa boca!”, “Menino malcriado, te arranca da janela!”.

Até que no dia posterior ao meu quinto aniversário eu atirei um pau de madeira no gato da Dona Chica. O gato deu um berro estridente de dor. Dona Chica admirou-se, enfureceu-se e saltou para cima de mim: “Menino malcriado, os bichos são como gente, eles também sentem!”.  Esta foi minha primeira aula. Desde então, Dona Chica decidiu me dar educação. E eu passei a ganhar mais do que comida.

Não sei ao certo se, o que mudou a minha história, foi o pau que atirei no gato ou o “também” do berro da Dona Chica. Só sei que se comenta muito sobre o berro do gato: miau!

Fredy


Venancio Edgar Zulian

Fredy chegou da rua ao anoitecer, entrou pela porta da cozinha e foi deitar-se na velha poltrona ao lado do fogão. Começou a cochilar, mas se levantou de repente e caminhou até a sala, onde deu de cara com o que parecia ser o resultado de um furacão.

A sala estava de pernas pro ar. A mesa de fórmica tombada de lado deixou algumas pedras espalhadas pelo chão. Perto da porta da despensa, marcas de calçado pesado - talvez botas - ficavam bem visíveis sobre uma nuvem de pó branco.

Depois foi até o quarto do casal. Quase tudo estava em ordem, a não ser a gaveta do criadomudo desencaixada, pendurada no móvel. Deu meia-volta, passou pela porta da frente para chegar ao pátio, farejou o ar, olhou a sua volta e saiu correndo em direção à casa vizinha.

Paulo estava sentado à mesa, de banho tomado, esperando pelo jantar. Márcia, sua esposa, parou com a panela de sopa no ar quando viu, através da vidraça, Fredy se aproximando.

- É o Fredy de novo, deve estar faminto - falou enquanto largava cuidadosamente a panela
sobre a mesa.

- Pobre alma! - exclamou Paulo, partindo um pedaço de pão – Não fosse por nós, morreria de
fome.

Fredy não quis comer. Andava de um lado pro outro como querendo dizer alguma coisa, soltava um gemido triste, corria até meio caminho em direção a sua casa e retornava afoito. O casal trocou olhares, parecia não entender a mensagem.

Já estava escuro e somente a luz diáfana da rua iluminava o casebre dos Macedo.  Não se via movimento algum. Paulo e Márcia foram até lá. Na terra úmida da rua e do pátio, havia marcas de pneus estreitos; no único degrau da escada, um chumaço de cabelos compridos; no marco da porta, manchas de sangue.

Entraram. Os poucos móveis do ambiente estavam fora de lugar, revirados. As paredes – carunchadas e pretas de fumaça - ostentavam figuras macabras. Numa espécie de altar no canto da sala, algumas imagens de santos estavam intactas, enquanto outras, como a de São Jorge, em pedaços, se misturavam aos escombros.

Paulo reclamou do cheiro de enxofre e de ácido, deu alguns passos e parou em frente à geladeira enferrujada. Parecia preocupado. Márcia o seguiu, parou ao seu lado e tapou a boca com a mão direita, arregalando os olhos. Fredy se aproximou. Márcia o pegou no colo, acariciou sua cabecinha e, olhando nos olhos de Paulo, disse: “vem, vamos embora daqui.”

Paulo apagou a luz, deixou a porta aberta e saíram sem tocar em nada. Nem apagaram o  epitáfio escrito com batom vermelho na porta do refrigerador - que mal dava prá ver que um dia fora branco -: “esta boca agora é nossa!”