Lançamento de livro de aluna da oficina

Ruth Rendeiro


Foram mais de dois anos amadurecendo como narrar uma parte de sua vida que a fazia sofrer ao relembrar, mas que acreditava ser fundamental deixar registrada. No início deste ano a jornalista Ruth Rendeiro deu por concluído o livro Até que o câncer nos separe. Uma narrativa que reúne textos e lembranças dos momentos em que ela tratava o câncer de mama e descobrem que seu marido, Manoel Dantas, está com um tipo de leucemia, via de regra, mortal. E foi. Três meses depois de diagnosticada, ele morreu.

Paraense, formada em Comunicação pela Universidade Federal do Pará, a autora há cinco anos mora no interior de São Paulo, mas escolheu Belém para lançar o seu primeiro livro. O evento, na Embrapa Amazônia Oriental, dia 5 de dezembro, às 16 horas, deverá reunir amigos, ex-alunos, e colegas que Ruth Rendeiro deixou em Belém. Há cinco anos ela mora no interior de São Paulo. Primeiro em São Carlos e há quatro em Ribeirão Preto.

Quando descobriu o câncer, em 2007, Ruth Rendeiro decidiu dividir a angústia com amigos e internautas. Criou o blog Minha História e diariamente postava as emoções que fizeram desse período um dos mais conturbados de sua vida. Ela comenta que mesmo sem saber, estava exercitando a terapia da escrita, uma forma de dividir o medo, as preocupações e os êxitos de quem vive situações como ter uma doença grave.

Junto com o medo, a jornalista teve que enfrentar as restrições de fazer o tratamento em Belém. O tumor, por ser pequeno, foi apenas extirpado e a mama preservada. A quimioterapia foi recomendada por alguns médicos e considerada irrelevante por outros. Enquanto se tratava, o marido, engenheiro da Embrapa, descobre que tem leucemia. A triste coincidência, as mudanças que as doenças trouxeram à vida deles, o sofrimento até a morte do companheiro, são os temas centrais do livro Até que o câncer no separe. Ruth Rendeiro, contudo, faz questão de ressaltar que não escreveu um compêndio sobre câncer ou um livro de autoajuda. “Escrevi principalmente pensando nos meus filhos que à época tinham 12 e 16 anos. Sei que com o passar do tempo eles esquecerão detalhes, passagens que, mesmo marcantes, serão engolidas pelos anos. Se algumas páginas emocionam, outras, contudo, fazem rir”.

Embora escreva desde sempre, como diz, e há 37 anos atue como jornalista, Ruth Rendeiro diz que não se sentia segura para escrever um livro. Resolveu então fazer o curso de especialização em Jornalismo Literário, em São Paulo, e, ainda em sala de aula, deu início àquele que espera ser seu livro de estreia. Saber, gostar e se dedicar à escrita não basta, assegura a jornalista que dá os primeiros passos como escritora. Para ela há técnicas que auxiliam, há uma metodologia que ajuda muito a organizar as ideias e o que poderia levar mais tempo para ser verbalizado, com o domínio de conhecimentos sobre o que se pretende escrever, toma forma mais rápido.

Ela optou em escrever o Até que o câncer nos separe em terceira pessoa como se estivesse observando as cenas e não participando delas e usando também o flash back com idas e vindas de momentos de um passado mais longínquo e passagens mais recentes. Misturou narrativas escritas especialmente para o livro com outros textos publicados na internet em seu blog. Um ir e voltar que pretende dar uma dinâmica maior à história. Uma história que retrata fielmente o que aconteceu. Uma característica que, ela faz questão de ressaltar, é um dos alicerces do jornalismo literário: a verdade acima de tudo. Assim como a humanização do texto com os sentimentos, o homem sendo mais relevante que os fatos. O inverso do jornalismo que se pratica no Brasil.

SERVIÇO

Lançamento do livro Até que o câncer nos separe
Autora: Ruth Rendeiro
Data: 5 de dezembro, a partir das 16 horas
Local: Embrapa Amazônia Oriental (Tv. Enéas Pinheiro c/ Av. Perimetral, Espaço Memória), Belém, PA
Exemplar: R$ 25,00 (e mais R$5,00 em caso de ser despachado pelo Correio)
Contatos da autora: ruth_rendeiro@yahoo.com.br e Ruth Rendeiro no Facebook

Empire State



 Dani Mansur

Como sentia falta de Pia! Na verdade, pensava nela o tempo todo, mas enquanto mastigava aquele pedaço de pão seco e tomava aquele café aguado – céus, como esses americanos conseguiam estragar uma bebida maravilhosa como o café? – a saudade chegava a doer fisicamente. Eu tinha muito viva a imagem da esposa ao acordar, ainda de roupa de dormir, os olhos imensos e negros, inchados de sono, os cabelos negros meio despenteados, os lábios carnudos, ela preparando o desjejum de ambos, enquanto o sol nascia. Ela acordava invariavelmente alegre, falando muito alto, a voz firme, dando ordens para o vento, tentando trazer um pouco de ânimo àquele que já não o encontrava em canto algum. A cena estava tão viva, que nem parecia que já havia se passado dois anos desde a última vez que a presenciou pela última vez.

Dois anos atrás ele partira da sua Itália natal, do porto de Civittavecchia, para uma grande aventura: tentar a vida na América. Estava casado há poucos meses quando a decisão foi tomada pelo casal. Na verdade, todos os seus conhecidos e amigos estavam partindo rumo ao novo mundo, não numa busca por um sonho, mas numa fuga desesperada da vida miserável que ali estavam levando. Não havia trabalho, comida, dinheiro ou esperança suficientes para a multidão de desesperados que se amontoavam pelas ruas das cidades. O porto e os navios rumo à América eram a única saída naquele momento. Ele tinha uma linda esposa, queria enchê-la de filhos, queria uma casa barulhenta, com cheiro de café quente. Não suportava mais olhar Pia nos olhos e dizer a ela que não havia conseguido trabalho.

Seu primo Toni mandara notícias desde os EUA, contara que estavam construindo por lá o edifício mais alto do mundo. Segundo soube, precisavam de muita gente pra botar a mão na massa, estavam contratando muitas pessoas e o critério era que não temessem o trabalho duro. Paolo tinha tanto apreço pelo trabalho, fosse qual fosse, que chegava a sonhar que estava assentando tijolos durante toda a noite e acordava cansado e satisfeito.  Depois de longas conversas entre ele e Pia, muitas lágrimas, muitos medos e sonhos verbalizados, decidiram que ele iria. Decisão dolorosa e corajosa para ambos. Se tudo desse certo, se houvesse trabalho e salário, se houvesse esperança na América, Pia partiria em seguida. Eles não confiavam mais na Itália.

Com a bagagem composta de duas trocas de roupa, um papel com o endereço de Toni e uma foto tirada no dia do casamento, ele desembarcou no porto de Nova Iorque. Rapidamente começou a trabalhar na obra, da qual ele já sabia até o nome: Empire State Building, o prédio mais alto dos EUA e talvez do mundo. Nunca em sua vida tinha visto tanta gente num único canteiro de obras: eram estrangeiros de toda parte, especialmente europeus derrotados na guerra. Mas havia também índios, canadenses, sul americanos e muitos americanos nativos.

À medida que a convivência os aproximava, ficava claro que as pessoas de diferentes origem, idioma e criação terminavam por ser todos iguais. Havia um sentimento predominante entre todos os trabalhadores: gratidão imensa por ter um trabalho. Todos estavam cientes da situação crítica “lá fora”, que era como eles chamavam a vida fora da grande obra de engenharia. Todos sabiam das notícias de fome, desemprego, desespero e desamparo. Por esse motivo, trabalhar 16 horas por dia não chegava a ser um problema e a exaustão completa do corpo ajudava a aliviar a dor da saudades de casa, das esposas, dos filhos, dos aromas da terra deixada pra trás.

A solidão os uniu em vários grupos: os italianos, os poloneses, os alemães, os índios. O idioma os trazia, de certa forma, de volta à casa. Tornaram-se família, passavam o dia juntos, trabalhando juntos, falavam de seus sonhos e de suas expectativas. Contavam milhares de vezes a mesma história de vida, como lá foram parar, onde estavam as esposas, quantos filhos tinham, falando longamente e afetuosamente de cada um deles, deixando lágrimas traiçoeiras escaparem de quando em vez. Juntos, ainda reclamavam da comida americana, do vento frio da cidade, da relação de amor e ódio com o país que os acolhera. A maioria narrava em detalhes o modo como se daria sua volta à cidade natal e uns poucos, como ele, diziam querer ficar.

As notícias de tudo e todos que haviam deixado pra trás chegavam com as cartas, eram milhares delas distribuídas todos os dias. Cartas que eram lidas, relidas e compartilhadas dezenas de vezes, cartas que alimentavam as almas daqueles trabalhadores. Traziam notícias de mortes, de nascimentos, de doenças, de saudades, notícias das vidas que seguiam longe dali. Naquele dia, gritaram que havia carta de Pia.

A última carta que Paolo recebera lhe fora entregue há um mês. Fora uma carta decisiva, menos romântica que todas as anteriores, porém seu conteúdo o deixou sem dormir por noites seguidas. Sua esposa dizia que estava disposta e animada para embarcar, queria deixar a Itália pra trás, dizia que que não havia mais motivos pra viver do outro lado do mundo. Agora que ele tinha um trabalho, um cantinho onde dormir e uma esperança crescente de que a vida poderia voltar a ser bela, ela queria estar com ele e nunca mais se separariam. 

Por esse motivo, quando anunciaram que havia uma nova carta, seu corpo inteiro estremeceu, sua vista ficou escura e os pensamentos ficaram confusos. Quando conseguiu tocar o envelope que o rapazinho do serviço postal estendia em sua direção, não conseguiu mais respirar, tropegamente dirigiu-se até o andar mais alto do edifício, que era para onde Paolo costumava ir quando queria isolar-se de tudo e todos, sentou-se sobre uma das vigas, lá no topo do mundo e rasgou os papéis, sem cuidado, arrancou dali um papel amarelado onde enxergou a linda letra de Pia, letra bordada que ele sempre admirou e no meio daquela barulheira infernal da obra a todo vapor, conseguiu ouvir a voz de Pia sussurrando o que ali estava escrito: Mi aspetta amore, sto arrivando.

Além das palavras



 Danielle Gasparini

Dentre os quase dez milhões de passageiros transportados nos ônibus da cidade de São Paulo todos os dias, você vê operários, playboys,  manos, minas, pretos, brancos, loiros ou morenos, albinos, afro albinos, moicanos, carecas, médicas, enfermeiros, engenheiros, domadores de leão, adestradores de poodles, professores de etiqueta,  noivos tirando fotos para o casamento, casais terminando relacionamentos, pessoas narrando acontecimentos íntimos no telefone celular, entregadores de flores, vendedores de planos funerários, garis, pessoas jogando papel no chão, colando chiclete no teto e passando meleca no vidro, deficientes físicos e mentais de toda sorte, vendedores de bala, de caneta, de brinquedo, de pamonha, de peixe e de mãe, domésticas reclamando das patroas, patroas reclamando das domésticas, pessoas carregando baldes, melancias, micro-ondas e pintinhos tingidos de rosa choque, adolescentes falando em dialeto próprio e ouvindo, em volume máximo, as últimas novidades do funk carioca e do sertanejo universitário. Recordo-me de ter lido em algum lugar que um tubarão morto foi encontrado no metrô de Nova York. Uma descoberta desse tipo, em algum ônibus paulista, não me surpreenderia – se fosse um jacaré gigante, turquesa, com bolinhas laranjas e sete patas, saído das águas do Rio Pinheiros, o fato talvez merecesse alguma atenção.
No meio desse caos, conheci um passageiro que em nada contribuía para toda essa confusão e sonoridade.  Ainda assim, ele foi o personagem da história mais inusitada já presenciada por mim em um coletivo. Passo a dividi-la com você.
...

- Bom dia, seu Rolando!

Não faço ideia de como seu Xerxes, o velho cobrador, sabia o nome dele, se é que realmente sabia. É possível que tenha inventado. Afinal, em três anos de viagens naquele ônibus, que saía do Terminal Grajaú em direção à Praça da Sé, eu nunca ouvi a voz daquele passageiro. Jamais o vi retribuir o cumprimento de seu Xerxes. Soltava somente um murmúrio, que poderia significar tanto um “Bom dia” quanto um “Me deixa em paz”. O cobrador devia acreditar na primeira hipótese, pois nunca deixou de cumprimentá-lo e sorrir.

O nome, verdadeiro ou não, combinava com nosso herói. Era tão antiquado quanto ele. Observando atentamente seu Rolando, acredito que ele devia ter uns quarenta e cinco anos, mas aparentava muito mais, graças à expressão severa e aos trajes um tanto anacrônicos e desalinhados. Blusa social sintética, gravata descombinada, sapato social descascado, óculos de lentes grossas. Sempre carregava algum livro antigo, grande, que na maioria das casas só serviria para escorar pé de mesa ou exibir para as visitas.  Imaginava que fosse bibliotecário, escriturário, algum operário das letras e do passado, desprendido do mundo das aparências.

Passada a catraca, seu Rolando dirigia-se ao banco dele. Sim, dele.  Dia após dia, ele se sentava no mesmo lugar, uma poltrona individual, próxima à porta do meio. O ônibus não ficava muito cheio naquele horário, perto do almoço, e os passageiros eram basicamente os mesmos. A convivência diária e a sisudez de seu Rolando serviam como título de propriedade.
Ele passava a viagem inteira lendo, imune às conversas e ao mundo ao seu redor. A impressão que transmitia era a de que nada que pudesse acontecer seria mais importante que o seu livro ou mais interessante que a sua própria vida.

Nós descíamos juntos no ponto final. Eu partia para a São Francisco e ele tomava o rumo oposto. Nunca esbarrei nele nos arredores, nem peguei com ele o ônibus da volta. Eu gostava de imaginar, às sextas-feiras, que o encontraria tomando cerveja em um dos vários botecos da região, aproveitando o happy hour e ouvindo um pagodinho. A ideia sempre me fazia sorrir.

Tudo começou a mudar numa segunda-feira ensolarada de novembro.

Naquele dia, entrei no ônibus, sonolento, passei meu bilhete no leitor e me sentei. Estava olhando para o nada quando seu Rolando entrou, se dirigiu à roleta e parou subitamente. Só então notei que seu Xerxes não estava lá. Seu lugar era ocupado por um jovem com dreadlocks e fones de ouvido enormes, de cor verde limão. Seu Rolando ainda hesitou um pouco, mas passou o  bilhete e tomou o rumo de praxe. Sentado, deu mais uma olhada para o cobrador e, em seguida, abriu seu livro do dia.
O ônibus partiu.

Alguns pontos depois, Eliane, uma senhorinha simpática e escandalosa, já velha conhecida de todos, entrou no veículo.

- Uai, minha gente! Cadê o seu Xerxes?

O jovem cobrador não lhe deu atenção. Foi o motorista quem respondeu:

- Seu Xerxes teve um derrame na madrugada de sábado para domingo. A neta dele passou ontem na garagem para avisar o pessoal. Está no hospital. A família acha que ele não volta a trabalhar. O rapazinho simpático aí é só um quebra galho. Amanhã deve vir um cobrador novo.

Todos permaneceram em silêncio. Xerxes era como uma instituição local. Não havia quem não gostasse do velhinho doce e trabalhador - salvo, possivelmente, o seu Rolando, que não emitia juízo de opinião, nem deixava escapar qualquer expressão que nos permitisse imaginar o que pensava.

No dia seguinte, realmente havia um novo cobrador, ou melhor, uma nova cobradora. Usava crachá. Eu nunca tinha visto cobrador usando crachá antes. Seu nome era Maria. Cumprimentei-a, e ela respondeu com um belo sorriso, que me impeliu a sorrir de volta. Gostei dela de imediato. Na casa dos quarenta anos, tinha cabelos castanho-claros, na altura dos ombros, era magra e um pouco baixinha. Uma mulher bonita.

Pouco depois, seu Rolando entrou no ônibus e dirigiu-se à catraca. Tirou o bilhete do bolso e, quando ia passá-lo no leitor, avistou a nova cobradora. Congelou por alguns segundos, após os quais enrubesceu. Maria lançou-lhe um olhar intrigado, seguido de um sorriso tímido. Seu Rolando deu um suspiro, abaixou a cabeça e passou o bilhete no leitor, bem rápido. Ato contínuo, fugiu para o banco dele. Durante a viagem, abriu e fechou seu livro várias vezes, mas não conseguiu completar a leitura. Olhava de soslaio a nova cobradora, visivelmente incomodado. Quando chegamos ao ponto final, ele desceu muito mais depressa que o habitual.

Na quarta-feira, seu Rolando não apareceu.
Na quinta, ele retornou, e daí pra frente as mudanças foram cada vez mais intensas. Trajava calças jeans e uma camisa pólo. O sapato social destoava, mas a melhora em sua aparência era visível. Entrou no ônibus mais pausadamente, passou o bilhete no visor e... Surpresa das surpresas: sorriu para a cobradora.  Maria sorriu de volta.  Em seguida, Rolando foi ocupar seu posto e abriu o livro que carregava. Mas novamente ele não leu. Continuava observando Maria furtivamente. Em alguns momentos, ela notou e desviou o olhar.

Na sexta-feira, ele sorriu novamente. A resposta de Maria foi um sorriso mais longo e doce que o do dia anterior. Quando passou por mim em direção a seu banco, reparei que Rolando não carregava um tijolo como de costume, mas um livrinho azul. Fiquei curioso. Quando descemos do ônibus, tive o cuidado de bisbilhotar e consegui ver o título: “Como fazer amigos e influenciar pessoas”.

Na segunda-feira, novas mudanças. Seu Rolando não pagou a passagem usando bilhete, como de costume. Pagou em dinheiro. Quando foi entregar a quantia, seus dedos tocaram de leve os dedos de Maria. Ambos coraram. Fiquei chocado ao perceber que seu Rolando não trouxera livro algum. Ao invés de ler, ficou olhando ao redor. Parecia estar reparando, pela primeira vez, o que faziam os demais passageiros, e tentando identificar o que eles liam.

Na terça-feira, novo pagamento em dinheiro, novo toque, novos sorrisos e um certo constrangimento adolescente. Eu já encarava a situação como uma novela, aguardando ansiosamente os próximos capítulos. Naquele dia, ele carregava um livro preto, e contive o riso ao ler o título: “Crepúsculo”.
Minha intuição do dia anterior estava correta. Nos últimos meses, quase todas as mulheres no ônibus (ou melhor, de todos os ônibus, de todas as cidades do Brasil, de acordo com os relatos que chegaram a mim) carregaram algum dos livros desta série. Um fenômeno inexplicável! Seria alucinação coletiva?

Na quarta, na quinta e na sexta-feira, Rolando e Maria já tinham um ritual silencioso e bem estabelecido de alegria e timidez ao se encontrarem.
Eu não era o único a perceber.
Naqueles três dias, seu Rolando não portava livros, mas sim revistas femininas. E na sexta-feira, quase caí da cadeira quando vi que, ao invés de ocupar seu banco, Rolando sentou-se bem na frente, a apenas duas cadeiras de distância de Maria.

- Eu não acredito que o seu Rolando tá gostando dela!  O que será que ele viu nessa bruaca aí? – reclamou Eliane, sentando-se ao meu lado, sua voz um tanto indignada, revelando sentimentos ocultos. Levantei os ombros. Eu realmente não imaginava. Estava mais curioso é para saber o que diabos ela vira nele.

Uma nova semana se iniciou.

Naquele dia, Seu Rolando entrou e se dirigiu à roleta. Não pagou em dinheiro como vinha fazendo - voltou a usar o bilhete eletrônico. Trocou um olhar rápido com Maria, um pequeno sorriso, abaixou a cabeça e se dirigiu rapidamente ao último banco do ônibus. Maria ficou desconcertada. Parecia haver lágrimas em seus olhos.

Só ao descer do ônibus, ao lado de Rolando, entendi o que ocorreu. O título do livro do dia era “Cinquenta Tons de Cinza”.  Dessa vez eu não consegui conter as gargalhadas, ou melhor, só as segurei até que ele se distanciasse de mim ao sair do veículo. Havia sangue naquelas veias!
Para minha decepção, e visível tristeza de Maria, seu Rolando não apareceu na terça. Nem na quarta.
Nem na quinta.
Na sexta-feira, o suspense dos dias anteriores foi recompensado.

Seu Rolando entrou no ônibus trajando um terno azul, sapatos reluzentes, camisa social branca – tudo moderno e alinhado. Usava óculos novos, daquele tipo sem aro. Rejuvenesceu dez anos, no mínimo. Trazia um buquê de rosas vermelhas. Deixou que todos os demais passageiros passassem à frente.
Para a sorte de Maria, atualmente quase todo mundo usa o bilhete eletrônico, porque se alguém pagasse em dinheiro, creio que ela não conseguiria receber e muito menos calcular o troco, de tanto que tremia. Finalmente, todos ocuparam seus lugares, seja sentados, seja de pé. Os olhares estavam fixos no casal.

Seu Rolando tremia e suava. Ficou parado por alguns segundos, como se estivesse juntando forças, e finalmente se dirigiu à roleta. Pagou em dinheiro a passagem. Quando Maria foi pegar a quantia, ele segurou delicadamente suas mãos e alisou seus dedos. Sorriu e entregou as flores.
Foi a primeira vez que ouvi a voz dele. Era bonita.

- Minha querida. Será que poderia te dizer algumas palavras?

Maria não estava vermelha, estava roxa. Assentiu com a cabeça.
Seu Rolando tirou uma folha do bolso da frente do paletó e passou a ler o discurso que segue. O momento era mágico. Posso jurar que não me esqueci de palavra alguma.

- Minha querida. Há muitos anos, feri e fui ferido por palavras. Desde então, passei a achar que nesse mundo se fala demais. Fiz um voto de silêncio, que por quase duas décadas observei. Mas na primeira vez que a vi, soube que não poderia mais sustentar minha decisão. Pior. Compreendi que, na verdade, meu voto não havia sido fruto de qualquer ímpeto virtuoso, mas sim  do medo de me machucar novamente. Era um voto de luto. Ao invés de me tornar alguém melhor, só fez com que eu me transformasse em um miserável.

Ele parou, tirou um lenço do bolso e enxugou levemente o suor da testa. Em seguida, continuou:

- Desde aquela terça-feira abençoada, minha vida mudou. Você me trouxe de volta. No início, fiquei atordoado. Não consegui ler, trabalhar. Tive febre. Queria entender o ocorrido, o motivo de tanto assombro. Compreender a razão pela qual, entre tantas mulheres que cruzaram meu caminho, só uma me causou esse efeito. Tentei esmiuçar o meu desejo, sem sucesso, pois o amor que sinto – repito, o amor – nada tem de racional. Ele simplesmente é. Quando entendi isso, minha angústia inicial cessou. 

Ele silenciou por mais alguns segundos, e em seguida soltou pesadamente o ar.

- Passei a sentir um desejo imenso de me comunicar. Eu nunca havia percebido como estava carente de contato com o mundo exterior, após tantos anos afundado em livros e em meus próprios pensamentos. Só que não sabia mais como. Não fazia ideia do que pensavam as pessoas, do que ocupava a cabeça das mulheres. Tentei desesperadamente adquirir algum conhecimento que pudesse me ajudar na tarefa de chegar até você. No processo, percebi que não poderia enquadrá-la nos modelos femininos retratados nos livros e revistas que pude pesquisar, tão simplistas e caricatos. Não.
Você é diferente, eu sei – não sei explicar como, mas sei. Você é única. Desejo imensamente conhecê-la e compartilhar da sua vida, se me permitir.
Ele abaixou o papel, olhou diretamente para os olhos de Maria, e terminou, agora sem ler e sem tremer.

- Eu perguntaria isso hoje – posso compartilhar a vida com você? Perguntaria, porque sei que é o que quero. Mas sei que soaria insano. Você não me conhece. Então te pergunto, apenas, se me daria a chance de um café.

Por alguns segundos, o ônibus silenciou. O veículo chegou a parar até que uma saraivada de buzinas tirou do transe o motorista.

Maria enfim se moveu. Tirou do bolso uma pequena caderneta vermelha, com a capa florida, pegou uma caneta,e pos-se a escrever freneticamente. Terminada a tarefa, tirou a folha e a entregou a seu Rolando, que leu e abriu um largo sorriso. 
Eles se olharam, deram as mãos. Em seguida, se beijaram longamente. Todos aplaudiram. Naquele momento, não pude evitar de pensar que toda história de amor é um pouco clichê. Pensando bem, um pouco não, um bocado!

...

Minha curiosidade nunca foi tão grande.
Vi que, quando eles se beijaram, a nota de Maria caiu no chão. Sinalizei para Eliane, que estava bem perto da roleta e entendeu perfeitamente o que eu queria, dando um jeito de pegar o papel. Ela levantou, me entregou discretamente a folha e desceu no ponto seguinte, com lágrimas nos olhos.
A nota dizia o seguinte:

“Meu querido. Desde que o vi, sonhei com um momento assim. Assim como você, minha vida mudou assim que o vi. Era inexplicável: eu sabia que você era a pessoa certa. Ao mesmo tempo, temia sua reação quando conhecesse minha realidade. Sou surda e muda desde que nasci. Mas agora meu medo acabou. Havia, como sempre sonhei, alguém no mundo reservado para mim, talhado para o silêncio.  Sei ler lábios. Nunca na vida alguém me disse tão belas palavras. Minha resposta não poderia ser outra. Sim, para as duas perguntas.”

Depois daquele dia, Maria e seu Rolando não apareceram mais no ônibus, nem seu Rolando. Meses se passaram.  Eu me formei.  Seu Xerxes, contrariando todos os prognósticos, voltou ao trabalho, sorridente como nunca, falando um pouco enrolado e manco de uma perna.  Eliane arrumou um namorado, Manoel, que conheceu no próprio ônibus.
Na última sexta-feira, quando saí do trabalho, vi Rolando e Maria, de mãos dadas, sentados num boteco na Praça da Sé. Um grupo improvisado tocava pagode. Seu Rolando, sorrindo, tamborilava os dedos na mesa, acompanhando o ritmo.

O rapaz da venda



Fernanda Handke dos Santos

Foi minha psicóloga quem primeiro me incentivou a voltar a trabalhar. Mas relutei. Eu que não precisava de trabalho para me recuperar da depressão, precisava era de respostas, saber quem matou minha irmã, por que fez isso, e ver o assassino pagando pela maldade. Isso, porém, ninguém podia me dar. A perícia só sabia repetir não havia qualquer sinal de arrombamento ou da presença de outros no apartamento onde, sozinha, minha irmã morava. No entanto, ela foi encontrada morta a facadas nas costas, caída de bruços sobre a cama ensanguentada. E eu não suportei tamanha dor, me afastei dos nossos pais e abandonei o trabalho. A Deise, minha amiga de infância, foi a única que me procurou nesse tempo, que incansavelmente me visitava, levando comida e paciência até que eu me recuperasse. Também foi ela que, depois de seis meses, concordou com a minha psicóloga e me indicou a uma vaga de recepcionista na mesma empresa em que trabalhava como secretária. Por insistência dela, principalmente, foi que aceitei aquele emprego.

Ficava perto da minha casa, de forma que eu podia ir e voltar a pé. Assim, em uma semana, me habituei ao caminho e já conseguia subir a rua íngreme com certa resistência. Dobrava a esquina, caminhava mais alguns metros e chegava na empresa. Para voltar no final do dia, o caminho era o mesmo, mas com o benefício da descida. Uma vez que a rotina havia se estabelecido, aquilo começou a me dar certa segurança e até a me restituir, ainda que um pouco, a alegria perdida. Mas quando, finalmente, consegui reconhecer o quão bem Deise havia me feito, quase que me obrigando a voltar ao mercado de trabalho, ele apareceu pela primeira vez.

Com um olhar de águia em ataque, direto e certeiro, o rapaz passou a me observar toda vez que eu passava em frente à venda, voltando para casa. E, mesmo que eu passasse pelo outro lado da rua, no momento que eu virava a esquina, ele imediatamente parava de arrumar as frutas, se colocava ereto e me acompanhava com aqueles olhos negros. Não estava interessado em mim, como alguém poderia pensar. Sua expressão não mudava, não havia qualquer sorriso, piscada ou sequer um levantar de sobrancelha. Eu esperava, embora um pouco assustada, que após alguns dias ele parasse de agir daquela maneira. “O que ele quer comigo?”, eu pensava. “Será que o conheci alguma vez e não estou lembrando?”, “Será que ele conhecia minha irmã e quer me dizer algo?”, ou ainda, “Vai ver que tem problemas mentais, e eu estou aqui me preocupando à toa.”. Enquanto fazia minhas considerações, decidi que, no próximo dia, entraria na venda e compraria algo para ver qual seria a reação do sujeito. Saí determinada do serviço naquele final de tarde, dobrei a esquina e me dirigia ao mercadinho quando o rapaz, ainda com aquela expressão de seriedade inalterada, vagarosamente levantou a mão direita até o pescoço e simulou o seu corte com o dedo indicador. Eu gelei, minhas pernas estacaram e perdi todo o interesse de tirar a história a limpo naquele momento. Quando voltei a mim, corri apavorada para casa e lá me tranquei.

Aguardei apenas tempo suficiente para que Deise saísse do trabalho e, tomada de nervosismo, telefonei para ela. A última coisa que eu queria era sobrecarregá-la ainda mais com problemas, contudo, naquele instante, meus dedos discaram seu número quase que automaticamente. Como esperado, minha amiga atendeu a ligação de forma muito afetuosa e nem mesmo deixou que eu me desculpasse por tê-la telefonado tão cedo. Era uma mulher doce e, com palavras suaves, conseguiu me acalmar enquanto perguntava o que tinha acontecido. Entre um soluço e outro, descrevi então tudo o que vinha ocorrendo e como aquela repentina ameaça havia me feito lembrar da horrível morte de minha irmã. Deise ouviu tudo sem se demonstrar intimidada, considerou algumas possibilidades e acabou concluindo que o melhor seria descermos a rua juntas no dia seguinte, em companhia de um colega de trabalho que era muito seu amigo e, portanto, não negaria o favor. A certeza desse amparo incondicional proporcionado por Deise foi o que me tranquilizou naquela noite. Concordei sem reservas com sua sugestão e, aliviada, desliguei o telefone, agradecendo-a imensamente.

No outro dia, como combinado, minha amiga e eu esperamos o Alex sair. Ele era um homem forte, trabalhava no setor de expedição da empresa, e tinha uma voz grave que, certamente, imporia algum respeito no rapaz da venda, mesmo que ele só o cumprimentasse. Eu estava bem mais confiante com os dois do meu lado, pronta para descer a rua.

– Bom, mas ele não é muito grande, né? – brincava Alex antes de dobrar a esquina.

– Haha, não é não – respondi. – É até bem magrinho, mas como eu estava sozinha...

– Hoje a gente resolve isso, garota. Pode deixar que vou lá tirar satisfações! Onde já se viu um marmanjo desses ficar ameaçando as moças.

– Obrigada, gente. Muito obrigada.

Ainda da esquina, apontei para o rapaz, que colocava-se a postos e, sem rodeios, pousava o olhar em mim:

– É aquele.

– Qual? – perguntou Alex.

– Aquele. Vamos descer mais um pouco e vocês vão ver. Ele está ali em pé, do lado das maçãs.
Deise espichava o pescoço, tentando encontrar o rapaz:

– Onde, querida?

– Ali, ó – eu apontava com discrição. – O desgraçado está me cuidando como das outras vezes. Ai, que horror!

– Calma, garota. Vamos fazer o seguinte, a gente para na frente da venda, vocês duas ficam desse lado da rua e eu vou lá falar com ele, ok?

– Sim – respondeu Deise.

– Sim – arrematei.
Com a segurança provinda da firmeza e da tranquilidade de Alex, tive coragem de parar com eles bem na frente do mercadinho, embora do outro lado da rua. No entanto, o rapaz agia assustadoramente como de costume, sem sequer disfarçar o olhar.

– Ele entrou? – Alex me perguntou.

– Como assim? Ele está ali, bem na nossa frente, nas frutas!

– Querida, onde exatamente? Não tem ninguém na venda, só a moça do balcão – disse Deise.

– Não, não é a moça do balcão! É esse cara aí, esse me olhando que nem um louco! Ai, gente, estou com medo, ele vai me ameaçar de novo! Alex, por favor, vai lá!
Alex e Deise se entreolharam preocupados e assim ficaram algum tempo, sem ação. Pedindo que esperássemos por ele, meu colega foi até o balcão da venda, e Deise ficou me acalmando, dizendo para eu não olhar em direção ao estabelecimento, mas para ela, até que o Alex retornasse.

Quando saiu do mercadinho, ele veio calmamente até mim e, com o olhar voltado para o chão, disse:

– Luiza, eu conversei com a moça do balcão, mas... mas não tem nenhum rapaz trabalhando ali na venda. Só o marido dela que vem pela manhã, monta as bancas aqui da frente, mas vai embora de manhã mesmo.

Enquanto eu tentava entender aquela situação e o olhar de pena que Deise dirigia a mim, Alex falou com tom de voz baixo e sério:

– Bom, garotas... eu acho que não tenho muito mais o que fazer aqui...

– Sim, Alex. Obrigada pela ajuda, mas pode ir agora... eu vou acompanhar Luiza até em casa para conversarmos melhor. – Deise se despediu dele por nós duas.

Chegamos caladas na minha casa; eu por ainda estar tentando entender o que tinha acontecido, e Deise por não saber como iniciar o assunto. Ambas sentamos no sofá, Deise segurando minha mão.

– Desculpa, Deise, desculpa – mal terminei de falar e comecei a chorar.

– Calma, querida. Talvez seja efeito colateral dos remédios – a expressão de Deise não a deixava esconder o pesar.

– Mas como? Como? Ele estava lá, mesmo hoje, ele estava lá!

– Minha flor, nós vamos descobrir o que está acontecendo. Você passou por um trauma terrível e tem sido uma guerreira até agora. Você vai vencer isso também, tenho certeza. Você... você entende que o rapaz não era real, né?

– Ele estava ali, Deise, tenho certeza de que estava...

– Querida, eu quero te ajudar, e provavelmente seja algo simples de se resolver se consultarmos um médico. Mas você precisa aceitar a realidade primeiro... esse rapaz não existe, não é real. Você consegue entender isso, minha flor?

– Eu devo estar louca, Deise. Não tem solução para a loucura.

– Você não está louca, por favor não fale uma besteira dessas!

– Deise, vá para casa. Eu preciso ficar sozinha, preciso pensar na minha vida.

– Como que eu vou deixar você aqui nessa situação?

– Estou falando sério, amiga. Eu quero ficar sozinha. – Levantei-me para abrir a porta.

– Mas...

– Por favor. – Eu insisti com firmeza e com a porta aberta.

Deise saiu contrariada da minha casa naquela noite, pedindo que a telefonasse assim que possível, entretanto, eu realmente precisava ficar sozinha. Voltei para o sofá e chorei toda a tristeza e toda a frustração que há tempos me consumiam. Pensei, repensei em tudo o que tinha acontecido, bem como nas palavras da Deise, e, com muito custo, aceitei o fato de que eu não estava bem. De alguma forma, eu estava tendo visões, estava delirando, e tinha de lidar com isso. Pela minha irmã, que fazia tantos planos quando teve a vida roubada com tamanha covardia, eu lutaria corajosamente e viveria por nós duas. Do mais íntimo do meu ser, resgatei a força suficiente para procurar por psiquiatras no livro do meu plano de saúde e agendei uma consulta, que deveria ocorrer no dia seguinte.

Já era tarde da noite e, como eu não tinha mais capacidade de pensar em qualquer outra coisa, resolvi que tentaria dormir. “Louca”, pensei, “Se tenho visões durante o dia, talvez eu veja a realidade enquanto durmo”. Quando, porém, me dirigi ao quarto e acendi a luz para me trocar, notei que havia algo estranho sobre o travesseiro, algo como um papel dobrado. Aproximei-me apreensiva e, de pé em frente à cama, abri vagarosamente o bilhete, sem, contudo, ter tempo de compreender o quanto aquela pergunta escrita a lápis seria definitiva: “Quem define o que é real?”.

E senti uma punhalada nas costas.