Diálogo



Nando Pradho

- Certas palavras podem ser medidas, filha – retrucou.

-  Não é facil ouvir o que as pessoas pensam de você o tempo todo e não fazer nada, pai.

- Por que você se importa tanto com a opinião dos outros?

- Porque é exatamente como eu penso também. Qual é o ponto na sua relação com a Julia que você acha normal? Os vinte anos a mais que você tem, os vinte centímetros a mais que ela tem ou o fato de ela ser filha da sua ex-amante. Ninguém entende. Todo mundo pensa que você quer se vingar da mãe dela por algum motivo muito forte!

- Ficar com a filha dela pra se vingar? Quem faria isso? A resposta é tão simples que nem vale a pena tentar fazer as pessoas entenderem; Você se envolve com quem está por perto.

- Isso é óbvio! A mamãe foi sua professora, a Clara sua empregada. E a Julia, filha da empregada. E agora, quem será a proxima? Ah.. Já sei! A dentista da Julia. Pai, onde isso vai parar?

- Filha, quando você crescer, vai entender que as relações humanas não são tão simples assim. Aí você vai poder escolher entre dois caminhos: seguir o que o seu coração manda ou se enquadrar dentro das expectativas dos outros fingindo que está tudo bem.

- Você realmente não me conhece, pai. Fala com tanta propriedade das relações humanas e não conhece a própria filha. Acha que eu não entendo o que você diz e me trata como se eu ainda tivesse 12 anos de idade.

- Mas, filha... Se você entende o que eu digo e não tem essa cabeça fechada das pessoas, então qual é o problema?

- Se você é tão “cabeça aberta” pai, aqui vai: eu estava namorando a Julia e ela me pegou com outra. Agora ela só está com você para se vingar de mim.

Rapunzel

 
 Ricardo André dos Santos

Duas semanas antes, Rapunzel tateara, durante o banho, um caroço em sua mama esquerda. O receoso medo que sentira naquele momento, tal qual o pálido bolor que acomete o pão envelhecido (quase imperceptível no início), atingiu o clímax com o diagnóstico do oncologista. Segundo o doutor Otto Sievert, células neoplásticas se desprenderam do tumor mamário, causando metástase no pulmão esquerdo e no cérebro. O médico estimou, com uma voz serena (e insuportavelmente paterna), a sobrevida de Rapunzel entre seis e dez meses. Sessões de quimioterapia e radioterapia constavam no intragável cardápio.

A bruxa tinha prenome, nome e sobrenome: carcinoma ductal invasivo. Não possuía rosto, verruga no nariz, dentes podres e risada estridente, mas ainda assim lançava seus feitiços, com eficiência caótica, no plano celular.

Rapunzel, com um esgar de sorriso que lembrava uma careta, perguntou a si mesma se algum outro personagem dos contos de fada viveria, assim como ela, uma existência às avessas. Quem sabe haveria uma bela adormecida insone, um Peter Pan idoso, ou um príncipe que, ao ser beijado, virou sapo?

Antes que seu longo cabelo começasse a cair em tufos, Rapunzel decidiu assumir o controle: pediu a Flora, sua cabeleireira e fada madrinha, que cortasse cada longo fio, desde a raiz. Doou inacreditáveis três quilos de cabelo à rede feminina de combate ao câncer. Desde então, passou a usar lenços da grife Scarf Me, acompanhados de uma sedosa trança multicolorida. Rapunzel calva, mas fashion! (e solteira: Antônio Ramos, seu namorado tricófilo, “pedira um tempo”).

E durante seus últimos meses de vida, Rapunzel manteve distância da torre do desespero. Sua força interior não foi descoberta, mas escolhida. Escolho ser feliz! Só por hoje, multiplicado por seis a dez meses!

Certa feita, Flora lhe dissera que há muitas paredes invisíveis a dividirem a arte do existir. Rapunzel, que, à época, dera pouca atenção às palavras da madrinha, agora não apenas sentia uma dessas paredes, como nela vislumbrava a aura de uma porta entreaberta. Assim que o feitiço da bruxa estivesse completo, tal porta se escancararia. Blumenau, sua casa extralivro desde que migrara da Alemanha, em 1850, agora também ficaria para trás. Rapunzel podia jurar que, do outro lado da etérea porta, Jacob e Wilhelm Grimm a aguardavam para lhe darem as boas vindas.

Numa chuvosa tarde de domingo - sete meses e dois dias após o diagnóstico-, algum incauto poderia afirmar que o “para sempre” da história de Rapunzel alcançou a última página, que a Bruxa Carcinoma, por fim, vencera. Mas Flora sabia a verdade. Enquanto jogava as cinzas de sua afilhada no mar sem ondas da praia de Zimbros, ouvia um fraco ressonar emanando das páginas do livro que trazia na sua bolsa: Rapunzel apenas retornou ao mundo das letras, para dormir profundamente até ser acordada pela voz de uma criança.

Era um garoto que como eu amava os Beatles, e os Rolling Stones




Gilberto Pereira Biscola

Os disparos haviam cessado. Os gritos dos inimigos ficaram para trás, mas, os dois soldados continuavam sua fuga, abrindo caminho em meio à selva fechada. A chuva incessante não abrandava o calor insuportável, pelo contrário, se constituía em mais um obstáculo a ser transposto na selva vietnamita. Fadigados, se ocultaram  em meio à relva, num ponto mais ou menos seguro, enquanto aguardavam a chegada do helicóptero que ia resgatá-los. Eram muito jovens, estavam apavorados, foram os únicos sobreviventes de um confronto com o pelotão inimigo. Nessa altura, Matt, um dos soldados, sabia que a chance de voltar vivo era pequena. Cerrou os dentes quando Chris, seu companheiro de farda, examinou o ferimento causado pelos estilhaços lançados por uma granada.

─ Está bem feio, não é mesmo? ─ perguntou Matt num esgar de dor.

─ Não está tão mal, vou tentar estancar o sangramento─ respondeu sem muita convicção. Ambos sabiam que se ajuda não chegasse logo, ele iria morrer.

─ Como fui parar nesse inferno? ─ se perguntou Matt.
Enquanto seu amigo cuidava do ferimento, deixou um fluxo de lembranças o guiarem rumo ao passado.

Matt foi transportado novamente para o ano de 1968, em sua residência em Princeton, quando preenchia seu tempo com garotas, estudos e sua paixão pelo rock, em especial pelos Beatles e pelos Stones. Naqueles dias, passava horas trancado em seu quarto, cercado por seus heróis “Hendrix, Lennon, Mccartney, Jagger e Morrison”, que imortalizados em pôsteres, apreciavam o show particular que Matt realizava com sua Les Paul, recém-adquirida com o dinheiro ganho em inúmeros trabalhos de verão. Atacava os acordes de “STREET FIGHTING MAN”, quando foi interrompido pelos gritos de sua mãe, já estava acostumado,  ela sempre pedia para ele parar, não entendia que o rock era a nova língua dos jovens, quando ele tocava se sentia livre de tudo.

Dessa vez, no entanto, ela pedia para ele descer, e, pelo tom de sua voz, achou que era algo importante. Seu primeiro pensamento foi que Alison, uma garota bonitinha que vinha cortejando há tempos, finalmente cedera a seus pedidos e estava ali embaixo concordando com um encontro. E porque não? Não era nenhum James Dean, mas no auge de seus 17 anos, era bem aceito pelas garotas, tinha longos cabelos loiros ,algo que elas adoravam, tocava guitarra, era inteligente e carismático, um bom rapaz. Desceu correndo as escadas, mas tudo o que avistou foi a figura estática da mãe, trêmula, com uma carta na mão, ambos sabiam bem do que se tratava. Viu as lágrimas descerem pelo rosto da mãe e odiou Nixon por isso.

Na noite que antecedeu sua partida, cortou com dor seu cabelo, e quebrou a guitarra na parede após tocar o hino nacional, tal como seus ídolos faziam.

Agora estava gravemente ferido,  junto de seu amigo, a espera de um resgate que se tardasse a chegar, lhe custaria a vida. Sabiam que os vietcongs estavam por perto, seus ouvidos treinados captaram sons quase imperceptíveis de botas se arrastando no terreno lodoso, se entreolharam em silêncio, examinaram a munição de suas Ak 47, e aguardaram o inevitável confronto.

Segundos depois, um leve farfalhar de folhas, anunciou a chegada de uns 12 soldados vietnamitas.   

 Seus olhos já estavam turvos quando viu seu amigo ser atingido por golpes de baionetas, e antes que sua vez chegasse ,pensou no mundo que deixava para trás, nos amigos, pensou em seus pais recebendo medalhas de honra do Congresso, no recôndito de sua mente ouviu Hendrix dizer:
“Quando o poder do amor se sobrepuser ao amor ao poder, o mundo conhecerá a paz”.

Foram seus últimos pensamentos antes de seus olhos se fecharem para sempre na selva vietnamita.

Vida de herói aposentado

 

Juliano Barreto Rodrigues

O Super-Homem, já velho e cansado, substituído por outros super-heróis da moda, com roupas mais brilhantes e assessorados por seus marqueteiros profissionais, se deparou com uma situação jamais tinha cogitada em seus tempos áureos: precisava fazer um exame de próstata.

Vivendo hoje de lembranças e respondendo inúmeros processos movidos por donos de imóveis destruídos por seus embates com vilões, canais de televisão que o acusam de declarações que os prejudicaram, associações que questionam seus métodos, etc, gasta boa parte do seu tempo em reuniões com advogados e em tribunais pelo mundo. E agora isso, ter que se preocupar com um órgão que nunca pensou que existia.

Temendo os paparazzi e preocupado inclusive com sua própria auto-confiança, relutantemente marcou a consulta para o dia 20.  Como um homem da antiga, representante dos heróis do passado, preferiu ir sozinho.

O médico pediu que tirasse a sunga, depois a calça, declinasse para frente e relaxasse. Constrangido, o Homem de Aço disse:

- Doutor, vá com cuidado e, por favor, não conte a ninguém que estive aqui.

- Calma! Vou começar.

No que o médico penetrou o dedo, o super-esfíncter se contraiu de uma vez, amputando o pobre médico. Naquela situação absurda, Super-Homem passou a viver mais um dos pesadelos de sua condição: ficou exposto na mídia e responde a mais um processo de indenização milionário.

Carro novo



Juliano Barreto Rodrigues

- Mas o que você tá querendo, mulher?

- Ah, sei lá, o Carlos me ofereceu o carro novo, um apartamento e uma pensão mensal, mas quer ficar com a casa.

-Tá! Então, o que você quer?

- Quero a casa. Nem gosto muito dela, mas não vou deixar ele morar lá com aquela vagabunda. De jeito nenhum! Esse gostinho não vou dar pra eles.

- Mas se não é o melhor pra você e seus filhos, por que não abre mão disso?

- Filhos? Que filhos o quê. Vou mandar tudo pra casa do pai. Acha que vou ficar presa em casa? Ele que se vire pra cuidar, vamos ver se aquelazinha vai aguentar. Não foi ele que quis sair? Então leve a mala.

- Pô, como você é cabeça dura. Seria bem mais fácil fazer tudo de forma amigável. Até porque, há muito tempo, você não quer saber mais dele... Não dificulte, né querida!

- Já decidi. Só assino a porcaria do divórcio se ele me der a casa. E quero uma pensão bem gorda, não vou mudar meu estilo de vida. Puta merda, nunca esperava isso dele: tão pamonha, pegou a vizinha bem debaixo do meu nariz. Eu, inocente, achando que ele só queria saber de trabalho.

- Certo. E nós, como ficamos?

- Para, né?! Tô falando de coisa séria e você apertando meu peito. Tá pensando o quê? Vamos continuar do mesmo jeito de sempre. Até porque, você é sócio dele e não quero ver minha mina secar. Se quiser é assim. Continue bem casado e faça ele me dar logo a casa.

E se eu morasse no Alasca?


Luana Ruas

Como disse certa vez o singular Renato Russo, “Todos os dias, antes de dormir, lembro e esqueço como foi o dia...”. E nestes últimos dias, só o que lembro é desse calor surreal que se instalou na cidade. Cada dia eu acordo mais triste; quando o relógio desperta, logo penso: Ah não! Vou ter mesmo que sair do meu Polo Norte particular e encarar o bafo.

Mas, sim, tenho. E essa é a realidade, meus queridos. Esse calor tá por demais da conta! Lembro de verões quentes, mas nunca como esse. Outro dia estava saindo do trabalho, num final de tarde. Me sentei num banquinho protegido por um sobra, na esquina da rua Olavo Barreto Viana com a Avenida Vinte e Quatro de Outubro. Ali fiquei esperando a minha carona. Sim, carona. Porque além de quente, não tem ônibus na minha cidade há uns 10 dias, mais ou menos. Enfim, não era sobre a tragédia do transporte que eu estava a me lamentar. Estava eu no dito banquinho, olhando para o trânsito. O sol parecia mais um laser gigante que tomava conta do céu; o asfalto parecia que ia descolar, como aquelas miragens dos desertos que vemos nos filmes. Naquele momento pensei: isso só pode ser o Capeta tentando subir à Terra e empurrando para cima o calor do fogo do Inferno. Mas não, não é. Isso é verão, minha gente, e dos bons (para os que estão em férias).

E como eu estava esperando uma amiga para pegar carona, ali fiquei eu, derretendo e pensando: será que é assim em todos os lugares? Será as pessoas sofrem assim com o clima? Eu mesma respondi minhas indagações, analisando os lugares que conheço. O Rio. Cidade Maravilhosa! Aham, sei. Quente sim, bem quente, mas os 40 graus deles ainda não superaram os nossos 30. O Nordeste? Só que não, como dizem por aí. Lá pros lados de Recife, Fortaleza, Rio Grande do Norte é mais quente que no Rio, mas ainda estamos na pior em relação a eles. Agora, Cuiabá. Meu Deus! Esse povo eu respeito. 50 graus? Lá nem piolho resiste na cabeça das pessoas. Acredito que esse calor que temos aqui ou em Cuiabá se torne mais insuportável pela ausência de uma enorme costa litorânea no meio da cidade. Tanto o Rio como as cidades nordestinas, no auge do verão, ainda contam com a colaboração da natureza, que manda uma brisa, mesmo que pouca, vinda do mar. Melhor que bafo do inferno, né?

Agora, e se eu morasse no Alasca? Tá, tudo bem, o Alasca é longe. Nesses lugares mais frios, como é? Nas últimas férias de inverno me fui a Buenos Aires. Julho, no auge da alta temporada. Minha mala estava recheada de toucas, mantas, luvas, botinhas peludas e tudo mais o que eu poderia (e gostaria de usar). Chego lá esperando o frio quase do Alasca e... 25 graus? Tá de brincadeira! Me enganaram. Não estava frio. E eu que achava que lá ia ter até uns floquinhos de neve pra cobrir meu gorrinho preto e me dar um super resfriado. Me dei mal. Acho que não existe mais inverno de verdade. Só no Alasca mesmo.

Olha, se eu morasse no Alasca, eu ia viver com frio, minhas “ites” respiratórias ativas, ia pesar uns 15 quilos a mais, de tanto tomar sopas e chocolate quente tentando me aquecer, meu cabelo ia ser seco, feio e espigado e, sim, eu ia reclamar do frio. Então, como nós, humanos, somos eternamente insatisfeitos com alguma coisa, eu fico por aqui mesmo, esperando o calor passar na minha quente Porto Alegre.