A calça



Karina Ap. Mathias Altobelli.

- Boa tarde.
- Boa tarde, senhor. Meu nome é Cintia, muito prazer. Posso ajudá-lo?
- Claro. Me chamo Marcos e estou procurando uma calça.
- Uma calça? Claro, senhor Marcos, temos vários modelos à sua disposição, é só me dizer o número que precisa.
- Número quarenta e seis.
- Certo. Quarenta e seis. E o senhor gostaria exatamente de qual tipo de calça?
 - Como assim?
- O senhor prefere uma calça jeans, de tecido, social, casual?
- Está calor, acho que prefiro de tecido.
- Perfeito. E o senhor prefere qual modelo?
 - Que modelos você tem?
 - Nós temos chino, skinny, cargo, saruel, também temos...
- Não, não, já estão bons esses modelos. Não entendo muito bem, o que me aconselha?
- Bom... eu te aconselho uma calça modelo chino. É simples e clássica.
 - Ótimo, parece uma boa escolha.
- Certamente senhor. Preciso saber a cor que deseja.
- Cor? Não havia pensado nisso. Pode ser branca.
- Tem certeza? Existem várias cores: preta, vermelha, amarela, roxa, verde, azul, lilás, marrom. Não prefere uma cor mais alegre?
- Sei lá, então pode ser amarela.
- Ótima escolha. Gostaria de bolsos na calça?
- Claro. Bolsos. Sim, gostaria.
- Quantos? - Como assim, quantos?
- Um, dois, três, quatro, cinco. Quantos bolsos deseja, senhor Marcos?
- Minha nossa! Quatro bolsos. Pode ser com quatro, não pode?
- Quatro bolsos é o ideal. Que tipo de botão o senhor deseja?
- Meu Deus, isso é cansativo, nunca estive em uma loja que pudesse fornecer tantos detalhes de uma calça. - Obrigada, senhor. É nosso dever agradar o cliente.
- Tudo bem. Qualquer botão, o que importa é que tenha botão.
- Na verdade não é assim que funciona, senhor. Poderia lhe explicar muito sobre botões, mas vamos ficar somente no básico mesmo. Deseja que a calça tenha um, dois ou mais botões?
- Oh meu Deus! Um botão já está ótimo.
- Pois bem, prefere com zíper ou sem? - Caramba, Cintia, isso tudo é necessário mesmo?
- Não se preocupe, não é incômodo, é meu dever e estou aqui ao seu dispor.
- Então, Cintia, por favor, desejo que minha calça tenha zíper, somente um zíper, e não me interessa o modelo dele, nem a cor, nem nada.
- Perfeitamente, senhor. - Então?
- Então, o quê, senhor?
 - Não vai trazer a calça para eu experimentar?
- Nós não temos o que o senhor deseja.
- Como assim? - O senhor pediu uma calça de tecido número quarenta e seis, no modelo chino, na cor amarela, com quatro bolsos, um botão e um zíper. Infelizmente não possuímos o que deseja.
- Minha nossa! Minha nossa! Eu vou embora, e não volto nunca mais...
- Por que o cliente foi embora, Cintia?
- Ele era exigente demais, não podemos agradar a todos.

Isabela


Leonel Rosa

Vinte e duas horas. Quando a jovenzinha entra no bar lotado, poucos olhos a acompanham. Mesmo trajando roupas de adulto, parece não despertar tanta atenção. De cabeça baixa, a cândida menina caminha até uma das mesas e para em frente a um cinquentão rodeado de garrafas vazias. Ele levanta o rosto, e esfrega os olhos como se estivesse com dificuldade em reconhecer a menina. “É você, Dulce?”, diz, com a voz enrolada. “Isabela. Sou a Isabela. Hoje é a última vez”, responde a menina, pacientemente.

Sob protestos, ele enrosca-se no braço dela e os dois saem, sumindo na escuridão.

Em meia hora alcançam o barraco de dois cômodos e um banheiro, onde cortinas penduradas em cabos de vassoura servem de porta. Ela põe-se a cuidar do cinquentão rabugento. Sem demonstrar qualquer pudor, enfia-o pelado embaixo do chuveiro e depois lhe troca as roupas fedidas de bar. Serve-lhe uma sopa quente, que ele engole com avidez. “Por que está vestida assim?”, o homem pergunta, entre uma colherada e outra. Calada, Isabela continua absorta em seus afazeres. “Quer me torturar?”, o homem põe-se a censurá-la. “Por que usa essas roupas grandes?”.

“Pare, por favor. Não aguento mais!”, ela explode, com voz esganiçada. “Chega de pinga. Sempre essa bebedeira, de manhã à noite.” Ela enfrenta o homem como adulta. “Já tem seis meses esse inferno, desde que a mamãe se foi. Virou rotina eu ir buscar o senhor no bar todos os dias. Só tá piorando a nossa vida desse jeito. Até com o colégio eu parei”.

“Ah, vai me afrontar? O que uma pirralha que só viveu treze anos, feito você, entende de vida?”. Antes que ela responda, lhe desfere uma violenta bofetada.

Chorando, Isabela refugia-se no quarto. Frente ao espelho, levanta a parte frontal da blusa e a enrosca na gola. Põe as mãos na cintura, gira, olha várias vezes a nova silhueta. Segura os seios e faz um comentário para si, espantada. Passa a mão na barriga, analisa cada nódulo, cada saliência. “O que você entende de vida...”. O motejo soa insignificante, um desdenhoso arremedo, possivelmente não mais que um desprezo ao padrasto do que realmente uma asserção.

Isabela permanece algum tempo se analisando. Talvez vestida com as roupas da mãe fique demasiadamente parecida com ela; ou o padrasto imoral veja na própria enteada a companheira perdida. Lentamente, despe cada peça de roupa enquanto murmura sua decisão: “Hoje é a última vez”.

Então, a menina-mulher retira algo parecido com uma filmadora de sua mochila de ursinho e ajeita com cuidado. Deita-se nua na cama e parece esperar pela última noite de abuso do homem bêbado no outro lado da cortina, que lhe roubou a inocência faz três meses.

Enquanto aguarda, uma luz vermelha pisca intermitente, quase imperceptível, em meio às roupas bagunçadas do armário.

Festa em Trande



Luciana Sacramento Moreno Gonçalves

O Carnaval de Salvador sempre foi uma expressão máxima de suas classes populares e seu encantamento vinha, sobretudo, dessa força genuína. Todavia, a sua transformação em bem de consumo começou a atrair os olhares e interesses da indústria capitalista. 

Na Bahia, tal atenção forneceu uma renda vultosa a muitos artistas, políticos e empresários, mas se transformou num ciclo que, praticamente, asfixiou o que dava vida ao evento. Empresários começaram a “camarotizar” o Carnaval, ou seja, investiram pesado em estruturas físicas com caros restaurantes e serviços que iam desde cinemas a massagistas, em espaços privados, com sistemas por eles denominados de all inclusive, a preços exorbitantes. A maior contradição é que, apesar de ambientados no circuito carnavalesco, os clientes desses locais se enfurnavam neles e mal assistiam àquela que um dia fora intitulada de maior festa popular de rua do mundo. 

Outro fenômeno era o interesse de cantores e bandas baianas, profissionais mais do consumo do que da arte, em integrar o staff dos camarotes, legando a festa atrações desconhecidas e/ou sem o reconhecimento popular. 

Simbolicamente, a violência é maior. O povo, que inventou a festa e que dá o tom dos ritmos e das canções, estava mais na margem do nunca. O sonho da felicidade, ainda que efêmero, havia sido alijado para os mais pobres. É óbvio que os governos baianos (municipais e estaduais), responsáveis pela festa, eram coniventes com tudo isso. O pior, a população baiana, sem condições de pagar pela inclusão em tais ambientes privados, ficava espremida nas ruas, sem sequer ter onde brincar, porque a abundância de camarotes gerava uma diminuição do espaço físico nas avenidas.

Atrelado a esse contexto, para os blocos afros, afoxés e aqueles que oportunizam espaços às classes populares era reservada a madrugada como único horário disponível de apresentação. As falas sobre segregação e até apartheid no Carnaval baiano apareciam nos principais veículos de comunicação do país. Nomes como Ivete Sangalo, Bell Marque e Durval Lelis defendiam que o evento deveria ser in door. O argumento maior para o fenômeno era que as classes média e alta temiam a violência das ruas. Portanto, era em nome da segurança individual e coletiva que as pessoas pagavam convictas por este serviço. O pretexto, na verdade, constituía-se em uma tentativa de tornar a festa mais rentável para alguns; em suas entrelinhas, o interesse dos clientes e empresários era elitizar o Carnaval baiano. E no Brasil, e principalmente na Bahia, isso significava embranquecê-la. Significava vendê-la para os turistas.

Entretanto, outra transformação começava a acontecer. Observava-se que os soteropolitanos começaram a debandar da cidade no período carnavalesco. Abundavam as meninas de salto agulha e cabelo escovado, fardadas dos abadás dos camarotes, ladeadas de garotões malhadões, pousando mais para as fotos das redes sociais do que se entregando ao êxtase da festa ou à “chuva, suor e cerveja”, cantada por Caetano, ocorrendo, assim, seu quase total esvaziamento.

Assim, quanto menos os soteropolitanos procuram a festa, mais artificial ela se torna, e aí, acaba por desagradar aos turistas também. Sem compradores de dentro ou de fora, os preços passam a ser menores. Decaem-se as vendas e a mesma indústria que praticamente destruiu a festa inventa estratégias de reanimá-la. Pouco a pouco, o Carnaval soteropolitano tem dado ares de fênix e evidenciado o seu tom educativo, pois, ao perder seu brilho, ao decrescer a participação popular e, proporcionalmente, aumentar os índices de violência, forçou muitas mudanças. 

Muitos blocos carnavalescos começaram a deixar de usar as cordas; o ministério público tem acompanhado e buscado evitar o péssimo tratamento dessas empresas aos cordeiros, uma espécie de seguranças da festa. Ocorreu a paulatina diminuição do número de camarotes e também um maior controle dos espaços da rua que eles ocupam. Hoje existe a revitalização de alguns circuitos, o retorno do Carnaval nos bairros populares com atrações localmente conhecidas, o incentivo a participação dos blocos afros e de índios em horários diurnos.

Esse conjunto de ações ocorreu graças a pressões populares e à união dos poderes públicos e privados. Isso diminuiu os índices de violência e fez com que os soteropolitanos voltassem à festa. Mas há ainda muitas mudanças a serem implementadas. A principal delas nem é na festa; é nas relações sociais que imperam no país, pois a desigualdade que se evidencia no Carnaval de Salvador faz parte da histórica conjuntura brasileira em que as classes trabalhadoras utilizam, às vezes, servilmente, suas forças para sustentar as regalias de uns poucos endinheirados e poderosos.

No mais, a lição que fica dessa história de ascensão, queda e tímido renascimento de uma festa popular tão rica quanto o Carnaval baiano é que o povo, o ator principal da festa, tem poder. Sem sua participação zombeteira, intensa, que inverte papéis (de gênero e de classe, especialmente), sem a possibilidade da catarse e do sonho que o evento evoca esvazia-se seu sentido. Fica a lição a ser aprendida: este é um evento pedagógico, que nos evoca o poder popular, através da arte e da festa, e assinala o quanto tais manifestações nos ensinam a conviver com a diversidade, nos exortam a vivenciar o corporal, sem temer o suor, a carne, a sensualidade.