Vermelho Vivo


Cláudia Cavalcanti

Estavam os dois sentados à mesa do almoço. Ele de bermuda, sem camisa, o suor brotava na testa, tinha o olhar opaco e a barba mal feita. Ela, feições delicadas, olhos cor de jabuticaba, a juventude de um botão de flor. Na fotografia amarelada pendurada na parede uma mulher vestida de noiva sorria e ao seu lado estava o mesmo homem, mais jovem.

Sob a mesa, a cada garfada ruidosa os pés sujos e calejados alcançavam as pernas alvas e trêmulas da filha, levantavam a barra da saia de cor azul e expunham as coxas firmes e bem delineadas. Ela cruzava as pernas, ele mandava que as descruzasse. Ela puxava a cadeira ligeiramente para trás, ele ordenava que voltasse.

Obedecia e ele sorria com os dentes estragados. Foi assim até que ela cobriu o rosto com as mãos e soluçou. Depois, enxugou as lágrimas na ponta da toalha de mesa descorada, desceu as mãos até o ventre e multiplicou o choro.

O homem deu um soco na mesa, derrubou os copos. Amaldiçoou a geração futura. Levantou-se, puxou-a pelo braço, arrastou-a da sala até o quarto. Rendida, suplicou que a soltasse. Indiferente, ele mandou que tirasse o uniforme escolar. Ela se recusou. Deu-lhe um empurrão que a fez rodopiar; ela cedeu e o uniforme foi caindo pelo chão. Livrou-se da bermuda, bateu em sua barriga desnuda, que despontava saliente. Passou as unhas encardidas por seu corpo delgado, riscou suas costas. Virou-a de frente e surrou-a várias vezes.

Ela se curvou, ele agarrou-a pelos cabelos longos, parecidos com os da mulher do retrato. Tirou-a pelo pescoço para dançar, uma dança sem música. Estavam vestidos apenas com a claridade que vinha da janela.

No baú de madeira escura buscou um trapo comido pelas traças. Cobriu a cabeça da filha com um véu de
noiva, forçou-a a deitar-se na cama, tapou sua boca e calou-a. Gemeu sobre seu corpo franzino. Depois de muito tempo, soltou-a e adormeceu.

Já era o anoitecer quando de novo a caçou encolhida no sofá da sala e ali mesmo voltou a gemer. Ela tentou se esquivar, encolheu-se em posição fetal. Ele prendeu-lhe as pernas entre as suas. O sofá rangia e a silhueta dos dois na penumbra era ligeira. Quando terminaram, mandou-a dizer que o amava. Por fim, cobriu o rosto da noivinha com uma almofada. Ela gritou, se debateu, se contorceu, suas mãos tentaram livrar-se do objeto. Pouco a pouco, perdeu os movimentos.

O pai caminhou até à cozinha, serviu-se de uma bebida que escorreu por seu peito grisalho. Tirou o retrato da parede, lançou-o contra a cristaleira, choveram pedaços de vidro.

Era noite alta quando abriu a gaveta de um móvel e pegou um revólver. Sentou-se na ponta do sofá. A lua iluminava o olhar parado no mesmo lugar. Cacos de vidro cintilavam feito estrelas pelo chão. Chamou-a, ela não respondeu. Bateu em sua barriga com o cano do revólver: uma, duas, muitas vezes e ela não se mexeu.

Abraçou-a, olhou para a parede sem o retrato, apontou a arma para si e atirou. O véu ficou salpicado de vermelho vivo.

A Jaqueta


Luciano Cavalcante de Albuquerque

O rapaz, bem vestido e elegante, se aproxima suavemente. Passos lentos e compassados. Bem de frente a porta da casa, bate palmas.
- Bom dia, Senhora!
- Bom dia, Dotor – retruca uma idosa simpática e humilde.
- Vim buscar minha jaqueta que deixei ontem com minha namorada.
- E ela disse que mora aqui?
- Sim. Ainda ontem à noite, ao nos despedirmos, a deixei na frente desta casa.
- O senhor namora com a moça e não frequenta sua casa?
- Na verdade estávamos namorando há pouco mais de uma semana e ela dizia ser cedo para me apresentar aos familiares. Assim combinamos adiar um pouco essa etapa.
- Onde o senhor a conheceu?
- Nos conhecemos na solidão da noite estrelada, numa esquina deserta onde só havia o céu e a lua como testemunha.
- Ela não disse seu nome?
- Eu a chamava de “Misteriosa da noite”! Nunca me importei sobre seu nome de batismo. Estar com ela e desfrutar de seu amor era tudo o que me importava.
- Por que resolveu a procurar aqui já que tinham combinado as apresentações familiares em outra ocasião?
- Ontem à noite eu havia colocado minha jaqueta nela, pois estava muito frio. Nos despedimos e só ao chegar em casa percebi que não a peguei de volta. Ocorre que minha carteira encontra-se no seu bolso. Não tive alternativa senão vir buscá-la.
Aquela senhora de longos cabelos pretos, rosto sereno e olhos profundos, sorriu amavelmente e lhe disse:
- O senhor deve tá enganado! A única moça que morava nesta casa – completou – era minha filha única, que morreu em um acidente de carro há um ano.
Pediu que o cavalheiro entrasse e, apontando para um retrato na parede, falou:
- Olhe, aquela é minha filha!
- Não é possível – bradou o cavalheiro – ainda ontem à noite deixei esta moça aqui na frente desta casa.

Diante da insistência e incredulidade daquele rapaz, Deodora pediu que a acompanhasse ao cemitério, que ficava pertinho dali. Adentraram naquele recinto silencioso. Depois de percorrerem ruelas apertadas que separavam túmulos suntuosos, ela direciona-se a um enorme a sua frente e lhe diz:
- Aqui está, o túmulo de Sílvia!
Ao ver a foto daquela linda mulher de longos cabelos pretos, rosto afilado, aparentando 25 anos de idade, com a inscrição em sua lápide registrando a data exata de sua morte, constatou ser a mesma mulher com a qual ele encontrava todas as noites, beijava e fazia juras de amor.
Sobre o túmulo, a jaqueta de Adalberto carinhosamente sobreposta!

Que maravilha


Hector's Oliveira

Em um sussurro quase inaudível, Fernanda respondeu “Não”. Foi como se falasse pra si mesma, tentando se convencer de alguma coisa.

“Perdão?”, questionou o padre. 

“Não”.Dessa vez o grito queimou sua garganta enquanto se virava para encarar os convidados sentados na nave. O noivo atônito não disse uma única palavra, e ela não se atrevia a olhá-lo.Largou o buquê de rosas amarelas no chão, puxou de sua cabeça um véu de vários metros, desfez o penteado, descalçou as luvas e as atirou em uma mulher enfatiotada que se postara a seu lado desde o início da cerimônia. 

Saiu da igreja correndo antes que alguém tentasse abordá-la. Na rua olhou para o céu como nunca antes e achou-o belo, apesar das pesadas nuvens gris que se fechavam sobre a cidade. Correu desabalada, atravessou a avenida sem se importar com os carros que buzinavam sem cessar.

Ela sabia aonde ir. Sempre soube, mesmo antes de entrar naquela igreja, mesmo antes de aceitar um soberbo anel de noivado. Ela sabia onde queria estar e não pararia de correr até chegar.

As primeiras gotas de chuva bateram em seu rosto e lhe destituiu da máscara que usara até então. Já não era a mesma de alguns minutos atrás. Estava chegando cada vez mais perto, podia ouvir as crianças que giravam e sentir o cheiro das árvores. Já podia ver ao longe uma casinha velha, um homem triste e uma vida de amor sincero que a aguardava.