Lucilene



Regina Fernandes Costa

            Não esperou o elevador.  De escadas, correndo, subiu os dez andares.  Suando em bicas,  o  rosto afogueado, a respiração ofegante, abriu a porta.  O coração ainda disparado, atirou a bolsa no sofá.   Thor a esperava, pulando sem parar.  Era sempre assim.  Depois de passar o dia todo fora de casa, era recebida com festa e  retribuía-lhe todo aquele carinho com afagos e beijos.  Depois de matarem as saudades, colocou-lhe ração no prato e água fresca no pote.  Deixou-o comendo na área e voltou à sala.  Pegou a bolsa jogada no sofá, fechou-se no quarto e afastou o guarda-roupa da parede.  Era pesado, mas ela mandara colocar rodízios para movê-lo com mais facilidade.  Atrás dele, embutido na parede, escondia-se um nicho todo acolchoado de veludo negro com porta de vidro de correr. Ali guardava suas condecorações.  Sim, suas aquisições eram frutos de batalhas, sentia-se heroína cada vez que vencia, como acabara de acontecer. 

Do fundo da bolsa, retirou mais um produto de sua ousadia.  Sobreveio-lhe, então,  uma sensação prazerosa, purificadora, comum após cada investida.  Ao tocar o objeto valioso, uma onda de calor percorreu-a dos pés à cabeça.  Ria e chorava.  O olhar de Linceu radiante. Um relógio suíço antigo.  Raro.  De ouro. Colocou-o junto aos outros. Já passava das dez da noite, quando o descobriu. Na rua erma, escura, o metal brilhava, chamava a atenção.  Aproximou-se da mulher grisalha no ponto do ônibus,  encostou-lhe o cano do revólver nas costas, firme, e, com voz suave, mas incisiva, exigiu-lhe o relógio.  Pega de surpresa, a senhora não ofereceu qualquer resistência.  Como demorasse a entregar-lhe o objeto precioso, ela o arrancou de seu braço e fugiu, fugiu com a rapidez de um relâmpago.  Embrenhou-se na primeira rua à esquerda, onde deixara o carro estacionado e, em alta velocidade, tomou o rumo de seu apartamento. 

Embora ainda suasse em profusão, sentia-se muito bem, revigorada.  Desde jovem percebeu sua necessidade de roubar.  O roubo a energizava.  Tinha certeza de que, no dia seguinte, quando voltasse ao trabalho enfadonho, teria uma disposição incrível  para enfrentar  chefes, clientes, colegas, quem quer que fosse.

Com os olhos faiscantes, percorreu o nicho aveludado.  De ouro, a pulseira com o nome gravado; o brinco português (apenas um); a gargantilha maciça; o pingente com um rubi; a tornozeleira; o anel com pérola; a aliança grossa; os cordões (de diferentes espessuras), os braceletes bordados, e muitos relógios. Estes eram os preferidos.   Lembrou sua primeira façanha.  Adolescente ainda.  Estava na piscina do clube onde ia com seus pais todos os fins de semana. Ah,  aqueles passeios com papai e mamãe sempre por perto tomando conta, cerceando. Um tédio!  Por alguns instantes, ficou só.  Viu, então, sobre uma  mesa próxima, entre os pertences deixados por uma moça que nadava na piscina, um relógio. De ouro reluzente, a corrente com mais de um centímetro.  Foi irresistível o desejo que irrompeu nela de tomá-lo para si e foi o que fez disfarçadamente.  Enrolou-o numa toalha e  escondeu-o na bolsa de praia.  A emoção que sentiu ao ver o desespero da criatura quando deu por falta do relógio foi indescritível.

A procura infrutífera dela contrastava com seu alívio de permanecer a salvo, insuspeita. O efeito  que esse primeiro delito produziu nela foi logo percebido pelos pais, não sem uma grande surpresa. A mãe que vivia fazendo promessas para que sua filha se tornasse menos egoísta  acreditou que a mudança era fruto de um milagre da Virgem. De fato, durante algum tempo,  manteve-se extremamente dócil, amorosa,  gentil com todas as pessoas à sua volta, as quais, antes,  costumava chamar de vampiros. Foram muitos os elogios que recebeu por conta dessa transformação.  Desde então, mais ou menos de seis em seis meses, quando seu esgotamento passava dos limites,  ela ia em busca de ouro para repor as energias que os outros lhe roubavam. Na casa dos pais, seu desafio era esconder suas aquisições.  Mas isso só lhe aumentava o prazer. Ainda assim, depois de formada, com um emprego de alto nível, decidiu morar sozinha.  Comprou um apartamento e mudou-se. No quarto, mandou escavar esse nicho que agora estamos mostrando.  Precisava preservar seus troféus dos olhos maldosos.    Entretida com a observação de seus ganhos, espantou-se com o som da campainha.  O dálmata latia sem parar... Ligeira, fechou com cadeado a porta de vidro.  Empurrou o guarda-roupa novamente.    Quem seria?  O interfone não havia tocado, ninguém poderia vir a seu apartamento sem aviso do porteiro.

Quem seria? Quem seria? Repeti mil vezes.  Mais uma indagação sem resposta, concluí.  Contudo, é porque existem perguntas que continuo a escrever. Talvez mais tarde eu consiga dar um fim à história de Lucilene.

            O prazo para entregar o conto ao editor terminava no dia seguinte.  Talvez eu pudesse decidir que  um policial  tinha tocado a campainha.  Seria verossímil, pois, a senhora que perdera o relógio podia ter ido à delegacia e ter descrito a assaltante. Pelas imagens das câmeras da rua, ela seria identificada. Descartei esse desfecho. Não consigo acreditar na eficiência da policia.

A pergunta perseverava.   Quem tocara a campainha?  Quem sabe a vizinha do 1004 que precisava de uma xícara de açúcar. Se assim fosse, provisoriamente, Lucilene dormiria sossegada com seu companheiro aos pés da cama.   Descartei mais essa possibilidade. Pedir coisas emprestadas não me parecia plausível em prédios de classe média alta.

A história de Lucilene assustava-me,  sua escalada no crime.  Até então ela roubava sem derramar sangue,  a não ser no caso do brinco português. Precisou arrancá-lo, rasgando a orelha da anciã. Com nojo, lavou-o demoradamente antes de repousá-lo sobre o veludo negro. No entanto, qualquer dia, a resistência poderia ser exagerada.Há pessoas que se apegam em demasia a seus bens materiais. Ela poderia perder o controle. Então...

Exaurida com tantas reflexões, sem poder concluir o conto, salvei o texto na pasta “Lucilene” e desliguei o computador.  Para espairecer, resolvi jantar num  restaurante que fica ao lado de casa. Não era cedo e havia poucos clientes.  Enquanto eu esperava pela sobremesa, um brilho extraordinário atraiu meu olhar para a mesa próxima à minha.  De ouro, o relógio usado pela idosa que acabara de sentar-se. Um suíço legítimo. Uma mulher solitária, pensei.  Como eu.  Dirigi-me, pois, à sua mesa para oferecer-lhe minha companhia.