A Última Noite de Amor



Luiz Otavio de Souza Matta

Quem pudesse ler o meu pensamento e me visse aqui neste gélido e opaco corredor de hospital, certamente pensaria que eu sou um velho tarado. -Mas se esta pessoa me conhecesse bem-, saberia que eu sou um apaixonado por datas marcantes, um historiador de mim mesmo, apesar da vida medíocre de contador do Banco do Brasil. Digo isto, porque estou com o meu pensamento em 30 de junho de 2013, a data da minha última noite de amor.

Não, não estou morto leitor afoito! Digo última noite de amor, para enfatizar o belo momento que vivi, mas na esperança de que o homem lá de cima, me conceda outras noites de amor, apesar da dor e das limitações da idade.

Desde já, peço desculpas, por eventuais clichês, mas confesso, não resisto. Como já disse, gosto de momentos marcantes e acho que eles devem ser lembrados e comemorados com festividades pirotécnicas, muito clichê e até um pouco de sentimentalismo. Na verdade, em vez de contador eu deveria ter sido cerimonialista, um tipo meio estranho que tenta transformar casamentos meio chochos, no grande momento da vida dos noivos, e festas de quinze anos, no dia de uma princesa, que pela idade não está pensando em castelos ebailes, mas somente no príncipe.
Aproveitando este ensejo, faço um alerta ao leitor mais jovem. A noite de amor que será aqui descrita, no que pese o meu viés para espetáculos, nada tem a ver com as tórridas noites de amor do cinema americano ou das novelas das oito. Assim, não espere ver belos corpos molhados e nem mesmo sussurros de prazer. Sem querer criar repulsa no leitor e afastar o grande público de uma possível montagem do meu texto para o cinema – como disse penso grande – a minha noite de amor teve corpos com barriguinhas, pelancas, rugas e limitações físicas, mas posso garantir, muitos beijos, carinho e uma sublimidade que me emociona e prende o meu pensamento neste momento tão estranho e difícil. Ficará evidente, que sou fã da cena de amor do filme “Chuvas de Verão”, o que pode ter influenciado no meu relato e emprestado um pouco mais de rigor cênico à noite de amor que tento descrever.

Este introito, - não é apenas notas para introduzi-lo no texto, mas sinceramente fazem parte do meu pensamento aqui no corredor do hospital. Não sobreviveria na minha profissão se me prendesse totalmente em devaneios, mas o faço em momentos especiais, quando estou desarmado. Aliás, se não fosse esta personalidade contraditória, teria enlouquecido com a doença da minha companheira, já que tive que me mostrar firme e pragmático, sem perder o meu lado contemplativo e sonhador, que já é do conhecimento dos senhores.
Eu e Maria Laura nos conhecemos no colégio em Rio Bonito. Apesar das picuinhas iniciais, na adolescência nos apaixonamos e, logo que passei para o Banco do Brasil, casamos e nos mudamos para a Tijuca. Lá tivemos três filhos, e, apesar das dificuldades inerentes à vida, nos mantivemos apaixonados e com uma sensação de dever cumprido.


Aqui fica mais um alerta, - para que o leitor não abandone o texto ou me acuse de propaganda enganosa. Apesar da vida sem graça - devo admitir – não faltou desejo, tanto que sem ele não haveria a noite de amor que tento descrever, ou melhor, haveria apenas noites de amor muito remotas, o que, na minha idade, dificultaria a lembrança dos detalhes.

Assim que Laura descobriu a doença, por óbvio, todos nós ficamos chocados. Não um choque de desespero, com gritos e choros descontrolados, mas sim, uma sensação de desconforto diante da consciência daiminente finitude da vida.

Quem já passou por esta situação sabe, - que muito do que eu falo agora -, na hora nem passa pela nossa cabeça, na verdade,- pegamos as forças que nos restam e seguimos em frente, com médicos, exames, internações, cirurgias e tudo mais que compõe o combalido sistema de saúde do nosso país. Não dá para pensar claramentena morte, só fica a sensação remota que ela está ali presente; o que pensando bem, é uma tolice, pois ela sempre esteve ali.

No caso de Laura, já são sete internações, todas com muita resignação, mas com esperança. Devo justificar a palavra esperança, já que sempre que ela voltava para casa ficava a sensação de que tudo seria diferente, como disse, não percebemos, ou fingimos não perceber a morte.
Naquele dia, mais uma vez a esperança pautou a volta de Laura para a casa. Apesar de ser a sexta vez que isto acontecia, aquela volta trazia uma mulher viva, cheia de planos, o que decerta forma emprestava um ar especialmente belo a ela, uma força singela que lembrava o início do nosso namoro.

Assim que chegamos em casa, deitamos na nossa cama e ficamos apreciando a brisa quente que corria pela janela através da fresta da cortina. Como ela sempre fazia quando nos deitávamos, me desarmou do controle remoto, me deu a mão e reclamou um beijo. Devo confessar que aquele gesto realmente me surpreendeu, já que naquele momento eu só pensava em internações, plano de saúde e, principalmente, no tempo de estada da minha esposa em casa.

Inicialmente, apenas cumprindo, como sempre, as ordens da paciente, beijei-lhe a testa de forma protocolar, sendo direcionado para a sua boca, com um risinho tímido, típico de Laura. Aquele beijo me deixou sem jeito. O sabor da sua boca, há muito não verdadeiramente beijada, aliada ao calor do seu corpo, me fez repetir o gesto do beijo. O odor de vida era notório naquele quarto que se tornara triste e opaco diante das ausências de Laura. Ela aninhou-se ao meu corpo entrelaçando as nossas pernas, de modo que o seu sexo fosse sentido pela minha coxa e o seu pescoço ficasse exposto para novos beijos. Logo indaguei, de forma zombeteira, sobre a chegada dos nossos filhos e netos, o que foi refutado por Laura, que agora me apresentava o seu corpo para ser explorado. Delicadamente, abri a sua camisola. Diante daquele corpo debilitado, uma possível repulsa deu lugar à estranha sensação de retorno à velha casa da infância, como uma criança me senti acolhido entre as pernas de Laura.Uma pequena melancolia tomou conta de mim, mas aquele anacrônico desejo nos despiu o corpo e a alma. Mais uma vez, talvez a última, estava diante de Laura, o amor da minha vida. O cheiro, a textura, o gosto, me implorava Laura, como o afogado implora pelo ar.Eu precisava me saciar de Laura.

Agora sim, o meu corpo voltou ao seu lar, não sei se com tanta paixão, mas o lar construído pela necessidade e pela intimidade de nos dois. Mais do que o gozo, o que sentíamos ali era a urgência de estarmos novamente acolhidos, Laura sendo habitada por mim e eu por ela.

No corredor do hospital, fecho os olhos, tento eternizar aquele momento, mas sinto que preciso me despedir de Laura, ficar em seus braços mais um pouco, como dois amantes que não querem se desgrudar após o amor. De repente, sou despertado pelo choro incessante e o abraço triste da minha filha.

Doutro Jivago



Sonia Regina Rocha Rodrigues


         O vereador Otacílio era um homem de ideias. De moinhos de vento a árvores de poemas, ele defendia tudo que prometesse tornar esse um mundo ecológico. Que maravilha, um planeta onde a humanidade respeitasse as outras espécies, onde homens, bichos e plantas repartissem o espaço com harmonia!
Apesar das risadas dos outros edis, Otacílio ia já pelos vinte anos de carreira política quando seu amigo de infância foi eleito prefeito. Conhecido como “Justo” por sua retidão de caráter, o novo prefeito pediu ao amigo algumas sugestões.
- Escreva aí o que você acha que a cidade precisa, com detalhes. Vou estudar suas ideias.
        Otacílio, entusiasmado, passou o fim de semana a escrever. Segunda-feira pela manhã, entregou dez folhas meticulosamente datilografadas, contendo 50 de melhores idéias ao prefeito, que lhe prometeu aproveitar ao menos uma.
        Otacílio aguardou, ansioso. Seu projeto de uso da energia solar era o mais promissor, pois a região era quente e ensolarada, mas ele tinha esperança que algumas de suas sugestões  sociais merecessem alguma atenção: jardins e hortas comunitárias, currículo profissionalizante onde alunos da periferia fossem engajados em atividades úteis ao bairro, estagiários oferecendo atendimento gratuito de excelente qualidade como cabeleireiros, sapateiros, alfaiates, gráficos, melhorando a vida da população carente.
         Pequenos empreendedores poderiam alavancar a economia local aproveitando o artesanato feito com folhas de bananeira e com a criação da indústria do lixo reciclado, paralelo ao projeto de postos de recolhimento do lixo tóxico: pilhas, lâmpadas fluorescentes, radiografias, remédios vencidos, aparelhos eletrônicos. E mais! A substituição das embalagens plásticas por vidros e sacolas de papel. Nos séculos em que a humanidade desconhecia o plástico, os animais marinhos...
         Um tapa no ombro o acordou de seus devaneios. Era o prefeito, a comunicar que, inspirado pela postura ambientalista do amigo, mandara espalhar gatos pelos jardins da praia, uma maneira ecológica de combater os ratos.
         O pobre vereador protestou, pálido. Os gatos transmitem doenças, iriam espantar os passarinhos e ele não escrevera nada sobre gatos em sua lista de propostas! Claro que não, a idéia fora mesmo do prefeito, mas... inspirado na visão de mundo de Otacílio.
         - O que vou aproveitar de suas ideias são os girassóis.
         Girassóis? O prefeito se afastou e Otacílio franziu a testa, perplexo. Aí lembrou-se: no ano anterior, voltando de férias na França, trouxera para o amigo uma réplica de um quadro de Van Gogh, comentara sobre a primavera em Provence e sobre os pequenos encantadores girassóis europeus, muito menores que os nossos. Os girassóis certamente não estavam entre as 50 ideias entregues ao Justo!
         No dia seguinte, ao caminhar pela orla, Otacílio tropeçava nos gatos e reparou horrorizado em várias pessoas trazendo pratinhos com leite e comida para os bichanos. Enquanto isso, do bairro do Zé Menino até o bairro da Ponta da Praia, dúzias de jardineiros arrancavam lírios, margaridas e camélias, substituindo todas as flores por centenas de girassóis. Para completar o desastre, não faltou nem o jornalista, ao lado da câmera, focalizando o desditoso personagem desta história.
         - Estamos aqui, caros telespectadores, com o autor da idéia de remodelação dos jardins da orla da praia, cartão postal de nossa cidade. O vereador Otacílio.
         Em vão o coitado protestava. O jornalista insistia, implacável: “o próprio prefeito afirmou na edição matinal que a idéia dos girassóis é do companheiro de longa data, que também o inspirara no controle ecológico dos ratos.”
         Otacílio, suando profusamente, levou as mãos ao peito e sentou-se, cônscio de seu suicídio político. Nos meses seguintes o prefeito passava apressado pelo amigo, sempre a agradecer pela feliz lembrança dos girassóis a embelezar nossas praias. (e a engordar os ratos, pois quanto aos gatos...)
         Nem o prefeito nem Otacílio foram reeleitos. Até o final do mandato, o ingênuo Justo interpretava como elogios as exclamações “aí vai o homem dos gatos.” Já Otacílio abaixava os olhos e corava ao subir as escadarias da prefeitura e ser cumprimentado pelo apelido: Doutor Jivago.

Relâmpago



Fernanda Stéfano

As luzes da Paulista em dezembro davam ao céu as estrelas que a poluição escondia.  Eu as contemplava entre um semáforo e outro através da janela meio aberta, donde um ventinho entrava trazendo cheiro de chuva. Foi quando o céu se abriu num clarão, lançando gotas violentas contra o para brisas e me pareceu que delas, vinha também à ordem repentina:

– Destrave as portas. – disse uma voz que não era da chuva.

Um segundo apenas. O sujeito se instalou no banco traseiro entre o apagar e ascender dos enfeites, tão rápido quanto os raios que disputavam o céu com a decoração. Senti um arrepio gélido em meu pescoço, provocado pelo objeto contra ele empunhado e meu raciocínio pareceu congelar. Então simplesmente obedeci.

- Abriu. Siga em frente. – a luz verde do farol sobressaiu-se de repente a todas as outras, liberando a passagem e travando minha garganta. Tentei dizer: - Leve tudo. Pode levar. Mas, ao invés disso, permaneci mudo, guiado pela voz que comandava meus movimentos.

- Dobre a próxima à esquerda e estacione no posto de gasolina. – as instruções eram em tom suave, em contraste com o frio agressivo do metal na minha pele. Eu obedecia, impassível. – Saia devagar. Vamos andando.

O objeto aterrador, oculto sob um casaco preto, agora roçava minha espinha. O sujeito na retaguarda me guiava até a loja de conveniência. Olhei em volta. Um dos frentistas conversava com a moça do balcão. Meus olhos gritam, mas nenhum deles parece escutar. Enquanto eu aperto os botões que compõe minha senha no caixa eletrônico num dos cantos do estabelecimento, mais um estrondo nos céus sacode meus pensamentos. Eu apenas obedeço.

- Pronto, vamos voltar. Caminhe devagar. – continuamos a peregrinação - Próxima esquerda. Agora à direita. Encoste ali na frente. Pare aqui. Esquerda novamente...
Outro trovão, mais um caixa vinte quatro horas, muitas outras luzes. Com as mãos estrangulando o volante e não juntas em reza, apelei para o divino quando o brilho delas destacou o menino Jesus do presépio armado no canteiro central próximo ao relógio que apontava três da manhã.  Comecei a sussurrar uma oração e foi então que o espelho retrovisor refletiu atrás de nós uma nova luz. 

- Acelera. – eu obedecia. 

A luz vem engrossada pelo som da sirene e se mantém em nosso encalço. Minha reza acompanha a velocidade. A chuva, a entonação da voz no comando e o suor que me encharca o jaleco. Tudo parece crescer.

- Acelera! - eu obedeço à ordem, que agora é grito. Gritavam também as nuvens, os pneus e a sirene logo atrás.

Novamente um segundo. Mais uma luz rasga o céu na vertical e o estampido seco entre a sirene e o trovão rasga em mim. Tudo feito relâmpago. Não pude ver de onde veio o dono da voz, nem o som, nem a bala, nem o vermelho inundando o branco do jaleco.  Agora faz silêncio e todas as luzes parecem vir apenas do céu. 

Pobre do Ronaldo

Venâncio Zulian


- Tu viu a Belinha, Benta? Fugiu com o Pablo.
- Mas ela não tava com o Ronaldo?
- Tá, tava. Mas tu sabe, né! Puta. Meteu os corno nele.
- Que coisa, Carmem. E o Ronaldo?
- Não sei, parece que vai se atirar da ponte. Mas vem cá, tu não tá acompanhando?
- Perdi dois dias. Anteontemfui no culto, ontem tinha debate, e o Radiclifi quis assistir.
- Teu filho ligado em política, Benta!?
- Tá estudado, Carmem. Diz que o voto tem de ser consciente. Parece que não vai votá na muié.
- Essa gurizada! Mas tu vota, né? Afinal tem tua casinha, teu carrinho, filhos na escola.
- Minhas dívidas.
- Nada! Se não pagar, eles não podem te tirar. O doutor que falou! Tu tá por cima, Benta. Fudido tá o Ronaldo.
- É mesmo. Coitado!