Confissão

Andrea Antunes Palermo Corte Real




Beatriz desce apressada da perua escolar, que estaciona na frente de seu edifício, mal se despedindo de seus colegas ou do motorista. Atravessa o pátio interno que dá acesso ao prédio de cabeça baixa, sequer acena para o porteiro. Leva o dedo indicador até os lábios e  começa a roer a ponta da unha, enquanto aguarda o elevador.

Entra no elevador sem se olhar no espelho e aperta automaticamente o botão do último andar. Agarrada à pilha de livros, fica mirando primeiro seus sapatos, depois o teto, depois seus sapatos novamente, até a parada do elevador.

Para no hall de entrada e hesita alguns segundos antes de colocar a chave no miolo da fechadura. Abre a porta devagar e encontra a imponente sala vazia escrupulosamente bem arrumada.

Pé ante pé, dirige-se ao escritório do pai, as mãos trêmulas ainda segurando a pilha de livros, tal qual um escudo. Novamente leva o indicador esquerdo à boca e morde o canto da cutícula, enquanto a mão direita dá uma suave batida na enorme porta de madeira.

Sem esperar pela resposta, abre a porta lentamente, o olhar fixo na direção da escrivaninha de madeira-de-lei, por trás da qual um homem de cabelos brancos está sentado, lendo algumas folhas de papel.

_ Pai... - a voz sai fraca. O homem sequer levanta os olhos em sua direção.

_ Pai... - eleva o tom, enquanto uma pequena gota de suor escorre pelo canto direito de sua face, junto à linha do cabelo.

_ Sim, filha. Já chegou? Estou ocupado. - Por um breve instante desvia o olhar dos documentos, fita a filha nos olhos para, em seguida, voltar à leitura.

_ Pai, eu preciso te contar uma coisa... - agora são as maçãs de seu rosto que insistem em tremer, e a fala parece pastosa.

O homem retruca que está ocupado e questiona a urgência da conversa.

_ É muito importante. - gageja Beatriz.

_ Então diga logo. - quase grita o pai.

Beatriz, de susto, deixa os livros caírem no chão. Desajeitada, abaixa-se para recolher o material, enquanto articula as palavras.

_ É que eu, eu nem sei bem por onde começar...

_ Pelo começo. - interrompe o pai bruscamente.

_ É que eu e o Ricardo... Nós... Nós começamos a namorar e aí... Aí aconteceu que eu...  - a voz vai sumindo -  eu ...

_Eu já sei de tudo! - vocifera - Só podia dar nisso, uma menina criada sem mãe!

_Sa-sabe? - gagueja Beatriz.

_ O garoto. O Ricardo. Acabou de sair daqui. Teve a hombridade de vir me contar tudo. Só por isso é que você não vai levar uma surra. Pela coragem do fedelho! Agora, já para o seu quarto e não me saia de lá até a hora do jantar. Conversaremos mais tarde, quando eu terminar meus afazares.

Devagar, Beatriz dá as costas ao pai, rumo a seu quarto, o corpo todo tremendo, as pernas bambas, as mãos transpirando e a visão completamente turva. De orgulho pela coragem de Ricardo.



São Paulo, 04/09/2014.

Meu Amigo Pedro

Annie Akil Pedersen

(Um conto inspirado na música de mesmo nome de Raul Seixas e Paulo Coelho)


Aquela era a segunda vez que eu participava do funeral de Pedro. Segunda e última vez, diga-se de passagem. Agora, Pedro estava realmente morto. O caixão fechado escondia o estrago que o tiro havia feito em sua cabeça.A morte é um fim inevitável para todos nós só que, para Pedro, este fim foi adiantado por ele mesmo. Resolveu explodir os miolos de uma vez por todas para dar cabo à carne que há tanto tempo só carregava sonhos esquecidos, reprimidos e violentados.

A primeira vez em que participei do funeral do meu amigo Pedro, nós ainda éramos crianças. Antes de ele morrer, costumávamos brincar à tarde, normalmente depois que o sol dava uma trégua. 

Empinávamos pipa no meio da rua, jogávamos bolinha de gude, implicávamos com as meninas do prédio e brigávamos como todo bom moleque deve fazer.Estudávamos no mesmo colégio e pegávamos a mesma condução para casa. Inseparáveis.Numa dessas voltas da escola, ao invés de corrermos para nossos apartamentos como sempre fazíamos, ficamos sentados na portaria do prédio ávidos por brincar com o ioiô que Pedro acabara de ganhar numa promoção de um refrigerante qualquer.

“Passa agora pra casa, menino!” Pulamos de susto. Não havíamos reparado na porta do elevador que acabara de se abrir. “Já disse que você tem que estudar!” – o pai de Pedro o segura pelo braço e o arrasta pelo hall de entrada. O ioiô cai no chão.“Vai fazer o que da vida desse jeito, moleque preguiçoso?”.Ele deu uma última olhada para mim com lágrimas silenciosas nos olhos e entrou no elevador sem relutar. Nascia a fórceps, naquele instante, um outro Pedro – o Pedro careta – e morria o meu amigo com tantos sonhos e desejos para vida. Guardei o ioiô no bolso e subi para casa também.

Hoje era então a segunda vez em que eu via Pedro morto. Ninguém no velório entendia como alguém com uma carreira tão brilhante ecom uma família tão linda poderia ter colocado uma arma na boca e apertado o gatilho. Eu entendia. O mistério sobre o que teria se tornado se tivesse brincado com o ioiô naquela tarde de verão havia lhe custado sua vida inteira.

Aproximei-me então do caixão, me ajoelhei e fingi estar rezando. Como se ele pudesse me ouvir, sussurrei próximo ao local que eu julgava estar sua cabeça desfigurada:

- Todos os caminhos são iguais. O que leva à glória ou à perdição. Há tantos caminhos, tantas portas, mas somente um tem coração. Pedro, onde você vai, eu também vou. Tudo acaba onde começou. 
Descanse em paz, meu amigo. Descanse agora em paz.

Coloquei o ioiô em cima do caixão e saí pela porta da capela.


A Visita

Carlos Weber



Ela começou a debater-se durante o sono assim que a sombra esgueirou-se pelas frestas da janela. A névoa escura deslizou em silêncio para o piso, deixando um rastro úmido na cortina colorida. Na parede oposta, o relógio com o rostinho sorridente da Minnie parou de repente, o ponteiro longo apontando o número 6, o curto entre o 2 e o 3. As violetas no vaso sobre a cômoda secaram e imediatamente morreram.

A temperatura do quarto caiu abruptamente enquanto a forma sinuosa e escorregadia serpenteava em direção à cama. Sobre o criado-mudo, a luz do abajur tremulou, piscou e finalmente apagou-se.

Ana Júlia sentou-se na cama de modo tão brusco e repentino quanto um boneco de mola, daqueles que saltam de uma caixa de surpresas e pregam um susto na pessoa. Imediatamente a mancha nebulosa imobilizou-se, a meio caminho do travesseiro. Sua forma esguia envolvia o pé da cama em uma espiral pegajosa.

Respirando com dificuldade, Ana Júlia perscrutou cada canto do quarto mergulhado na penumbra, enquanto o coraçãozinho disparava descompassado no peito franzino.

― Mamãe! – ofegou, a respiração entrecortada em haustos ineficientes.

Fez menção de descer da cama, mas em seguida rolou os olhos inquietos pelos cantos mais sombrios do aposento e então recolheu os pezinhos antes que tocassem o chão.

Gotas de suor gelado brotaram de suas axilas e riscaram a pele trêmula sob a camisolinha fina estampada com motivos infantis.

― Tem bicho aqui! – tentou gritar, mas a voz não passou de um fraco gemido.

Foi quando o cheiro pútrido e nauseabundo invadiu suas narinas. Os olhinhos arregalados voltaram-se na direção do travesseiro no exato momento em que a criatura se acomodava sobre ele. A anomalia intangível e semitransparente materializava-se, adquirindo densidade, cor e textura de modo constante e gradual, mas sem fixar-se em uma única forma definitiva.


A cada mudança, a coisa pulsava e tremeluzia, parecendo ao mesmo tempo estar e não estar ali, como uma holografia inconsistente projetada por um aparelho defeituoso. De modo hipnótico, o corpo amorfo endureceu na forma de uma carapaça espinhenta e áspera, com garras longas e afiadas. Logo depois transformou-se em uma gorda aranha peluda, com quelíceras triplas que moviam-se o tempo todo. Em seguida mudou para a forma de uma cobra verde e anelada, brilhante como o abdômen de uma mosca varejeira.

Um instante mais tarde contorceu-se preguiçosamente enquanto metamorfoseava-se de modo abjeto em algo gelatinoso, com longos tentáculos viscosos brotando por todos os lados, olhos multifacetados de inseto nas pontas e ventosas ventrais que expeliam um muco âmbar visguento.

Depois de um minuto de paralisia o olhar de Ana Júlia foi atraído pelo olhar funesto da aberração, que a fitava transbordando malícia e perversidade.

E no exato momento em que ela inspirou o ar, em um gesto instintivo para encher os pulmões antes de uma nova tentativa de gritar, o demônio a atacou: entrou por sua boca na forma de uma enorme lacraia marrom, as dezenas de patas espinhentas abrindo caminho vorazmente através da garganta, rumo ao ventre da hospedeira que, indefesa, esvaziou simultaneamente a bexiga e os intestinos enquanto seu corpo estrebuchava em uma violenta e agonizante convulsão.

Seus membros incharam em poucos segundos, e sua pele tornou-se imediatamente avermelhada e febril. Os poros começaram a verter sangue. As pontas dos dedos dos pés e das mãos se romperam com o inchaço súbito, expelindo sangue e todas as unhas, que ficaram espalhadas sobre a cama agora imunda.

Os espasmos violentos foram diminuindo até cessar por completo. Mas o corpo de Ana Júlia estava irremediavelmente arruinado. A cabeça estufara-se como um balão contaminado. À exceção de alguns fios em pequenos tufos esparsos, quase todo o cabelo havia caído, expelido pelos vasos capilares no couro esticado sobre o crânio deformado.

Com um brilho maligno, os olhos esbugalhados pareciam prestes a explodir ou serem ejetados das órbitas, e já vertiam filetes de sangue diluído em lágrimas. Sangue e muco também escorriam pelo nariz e pelos ouvidos.

A voz grave e roufenha protestou pela boca da vítima:

― Muito apertado aqui dentro! Desse jeito, não vai durar muito tempo, sua bostinha.

Sentou-se na cama com movimentos desengonçados. Tossiu. Em seguida, um acesso de vômito com abundantes jatos fez seu corpo dobrar-se para frente em espasmos violentos.

― Ah, assim está melhor – grunhiu, depois soltou um arroto sonoro e obsceno – Rápido, precisamos fazer uma visita de despedida a Mamãe-Papai antes que você se torne completamente inútil – as palavras soaram quase ininteligíveis, pois a língua intumescida já pendia fora da boca, gotejando bile e sangue.

Com uma risada gutural, o corpo de Ana Júlia titubeou desengonçado na direção da porta entreaberta, rumo a uma nesga de luz que vinha do corredor, seus dejetos escorrendo pelas pernas trôpegas e deixando um rastro de imundície pelo caminho.

Parou por um instante à porta, agarrou a própria língua e arrancou-a com um puxão violento, atirando-a em seguida com descaso a um canto. O músculo caiu ensanguentado e disforme sobre o tapete macio, como um gigantesco verme morto.

Antes de entrar no quarto onde os pais de Ana Júlia dormiam, a nefanda figura ainda cambaleou envolta em uma aura de pestilência até a cozinha e apoderou-se da maior faca que encontrou na gaveta sob a pia.


Café

Daniel Brandão

– Doutor, tiroteio no Jardim São Paulo – informou o policial. – Um morto e dois no hospital.
– Azar o deles – respondeu o delegado. – Não mandei irem atrás de drogas. Cambada de marginal.
– Pediram pra você passar lá.
– Pra quê? Estou atolado de serviço aqui. Faz um mês que não consigo dormir direito de tanto 
trabalhar, e esse bando de bichas ainda querem que eu vá… Ah, pau na bunda deles. O caralho que 
vou.
– Não sei, só pediram.
– Não vou, mandem outro. Não tenho tempo para perder com drogados. Que se fodam. Traz café 
pra mim e me ajuda com essas porras de papéis.
– Doutor, ligação pra você! – gritou a secretária. – É a sua esposa.
– Não posso atender! Diz que falo com ela quando chegar em casa.
– Ela disse que precisa falar agora.
– Manda falar com o cachorro então! Puta que pariu. Qual a dificuldade de entender?
– Então você não vai passar lá no Jardim São Paulo mesmo? – questionou o policial.
– Nem fudendo. Vai você lá, depois me passa tudo. E cadê meu café?
– Tá na cozinha. Levanta daí e vai pegar. Você precisa dar uma volta, descansar.
– Preciso que você me ajude em vez de ficar dando conselhos inúteis
– Por que não tira umas férias? Vai viajar com a sua família. Como está seu filho?
– Não sei. Faz uma semana que não vejo ele.
– Uma semana, doutor? Que isso, precisa passar mais tempo com ele. Manter a união na família. 
Podia tomar café da manhã com ele, isso ajuda.
– Meu filho me odeia. Pega essa cópia na impressora pra mim. Só sabe pedir dinheiro e reclamar da
vida.
– Tá igual o senhor então. Quantos anos ele tem?
– 17, acho. Tenho que ver… Pega o relatório ali pra mim.
– Idade difícil. O meu já tá casado, graças a Deus. Queria virar policial também, mas eu disse que 
era melhor não, e ele seguiu meu conselho. O seu quer ser o quê?
– Não sei, caramba. Ele… Alô, que foi querida? Eu já não disse que estou ocupado? O que tem ele? 
Como assim? Para de chorar, porra! Não… Como? Mentira. Com quem? Certeza que ele não tá no 
hospital?
– Que foi seu delega?
– Onde foi o tiroteio?
– Jardim São Paulo. O senhor tá bem? Precisa de ajuda?
– Meu filho. Era meu filho.

Conversa Fiada



Alison G. Altmayer

- Oi, filha!
- Fala, mãe – Carla sussurrou, revirando os olhos e tamborilando a caneta na mesa.
- Liguei só para saber se está tudo bem – Dona Ana disse suavemente.
- Tudo bem – confirmou, pensando que entre o último telefonema e este, mal tivera tempo de ter novidades para contar à mãe.
- Aqui também. Parece que vem chuva com esse calorão fora de época, não é?
- É… - Carla conferiu de soslaio o céu de brigadeiro pela veneziana – e o pai?
- Teu pai está bem, lendo ali na varanda, esperando o almoço. Estou preparando um ensopadinho, que ele tanto gosta.
- Mãe, tu sabes bem que não posso ficar assim de conversa fiada no meio do expediente.
- Vens almoçar domingo, filha?
- Hoje é recém terça-feira, mãe, impossível saber.
- Se não puderes, não tem problema – depois de um silêncio breve, rogou docilmente. - Vem para o café da tarde, então.
- Tenho que desligar – respondeu, notando o chefe levantar os olhos do outro lado do vidro e fixá-los nela.
- Daí poderias aproveitar para trazer do Mercado uma daquelas gaiolas duplas para os meus canarinhos. Estão querendo namorar.
- Tá, mãe, tá! – Carla manteve os olhos grudados no chão do parquet carcomido, já antevendo o domingo num ônibus, com uma gaiola dupla e o café da tarde com os velhos.
- Tudo bem, filha, estou vendo que estás com pressa. Fica com… - triste, percebe o silêncio sepulcral na linha -  ...Deus!

A Banda


Eduardo Milléo Baracat

Mas só sou aprendiz de corneta. Que que deu na veneta desse capitão?

“As ordens, são as ordens”, dizia o vô Cádio.

Inda mais de capitão. - “No exército tem que obedecer os superior.” E ele conhecia bem da coisa, serviu trinta anos. Chegou a sargento. Era respeitado pela soldadaiada e também pela hierarquia. Mas quem sofreu nas mão dele foram os subversivo. Também, brabo que doía. O que teve de pau d´arara e cascudo...

Contava com gosto - como os comuna repiavam com os choque, e desembuchavam até o que não sabiam. Só o nome dele já impunha respeito: sargento Leocádio.  Às vezes nem precisava forçar muito, mas mesmo assim ele usava as técnica até o fim. Chegou a fazer curso com os gringo,aprendeu até uma coisa chamada “telefone” que deixava os preso surdo de tanto pé n´ouvido que levavam.

O que ele gostava mesmo era da cadeira do dragão. Só de olhar o treco, dizia,os pelo erguiam. Mas tinham uns teimoso, ele contava. Esses chegavam a desmaiar e não falavam. Teve um barbudo... Perigoso... -,chegou assaltar banco. Esse sabia muito, mas levou tudo consigo pras banda do lado de lá.

“As ordem são as ordem”, ensinava o vô Cádio.

Que que deu nessa gente? O maestro Prudente, coração. O tenente Bento Antonio, ciático. O cabo Jerônimo, indisciplina.Sobrou só eu e essa caipirada.

“Tô reclamando não, meucapitão. Meu jeito é assim mesmo. Entendi, capitão, a banda tem que tocar na parada, pro povo e pros home”.

Assimeu, Clarismundo da Silva Souza, aprendiz de corneta, me torneio regente. Lá na frente, endireitado, peito estufado, braços lá em cima, munhecando e desmunhecando pra lá e pra cá com a varinha na mão, regendo os hino e a pátria amada.

Pena meu pai não poder ver. Esse era músico dos bom, tinha talento, a música tava na veia. Tocava de orelha o que pedissem. Boêmio de gosto. Vivia na noite. O que toco de viola foi ele que me ensinou.Era amigo de todos e gostava de uma saia.Fez sofrer minha mãe. “As má influência”, contava o vô Cádio, engolindo seco, e segurando as lágrima. “As má influência desses comuna filhos de uma égua, levaram meu filho a perdição”.Vô Cádio até que tentou, mas o cabeça dura do seu filho, despirocou e defuntou,cantando coisas de amor.

“Mas as ordem são as ordem”.Aprendi com vô Cádio.