Sem Adjetivos

Luiz Otavio de Souza Matta


Depois de quase cem anos de democracia, o Brasil caía novamente em um regime de ditadura. Mesmo eleito pelo povo, o ditador, com suas ideias de ordem e de tolerância zero, aos poucos foi conquistando o povo e acumulando sem maiores problemas todos os poderes da República. Recentemente, assumiu também a presidência da Academia Brasileira de Letras. Como mandatário da nossa língua, o ditador, através de mais de um dos seus decretos, proibiu o uso de adjetivos, tanto na linguagem escrita, como na linguagem falada.

Tal medida, como as demais determinações daquele período de exceção, tiveram pouca resistência da população, já que o estado de ordem, o individualismo e a indiferença das pessoas se encaixavam bem com aqueles tempos de caos, degradação e de vida dominada por máquinas.

A imprensa já censurada, pouco ligou. Nas redes sociais, cada vez mais vigiadas, as pessoas se limitavam a “curtir” determinadas coisas e pessoas, sem a necessidade de se preocuparem com maiores qualificações. Os poetas, quando não eram calados, também não ligavam,afinal, pouco existia no país que valesse um elogio, até a natureza, outrora festejada, agora carecia de encantos. Até mesmo o narrador que vos fala teve que se virar sem os adjetivos.

No meio de tanto marasmo, o ditador estava cumprimentando a população em uma praça, na comemoração de mais um ano de ditadura, quando avistou uma moça e ficou apaixonado. Logo a notícia chegou aos ouvidos dos assessores da presidência, que não tardaram em procurar a moça para marcarem um encontro. O que eles não esperavam era a falta de empolgação da moça com a honraria recebida e principalmente a sua indiferença em relação ao próprio ditador. Sempre que era indagada, seja pelos agentes do governo, seja pelas pessoas próximas, sobre o que ela achava do ditador, ela respondia: -“Por força do decreto 201.578/2081, estou proibida de usar adjetivos de qualquer espécie, é melhor evitar problemas”.

Após muita insistência, a moça finalmente foi se encontrar com o chefe da nação e não demorou muito a ceder aos seus encantos. O que para os conselheiros da presidência não passaria de uma aventura, logo se tornou algo sério, já que a paixão persistia.
Apesar do amor, que naquele ponto a moça já começava a demonstrar, o ditador não se conformava em não saber o que ela realmente pensava sobre ele. Assim, o presidente resolveu derrogar o decreto que proibia o uso de adjetivos, admitindo apenas adjetivos elogiosos ao ditador e à ditadura.

A medida pouco efeito surgiu, pois, logo após a sua promulgação, a moça, ainda na cama do ditador, disse:

- Infelizmente,meu amor,não tenho elogios para o ditador e muito menos para a ditadura.
A sinceridade da moça deixou o ditador transtornado.Agindo com cólera, já que não conseguia distinguir o homem do ditador, acabou por expulsar a moça do palácio, mesmo antes do raiar do dia.

Como era comum naqueles tempos, ao se dirigir para a sua casa, já tarde da noite, a moça acabou sendo sequestrada a mando dos assessores do governo, que pensavam que assim livrariam o ditador daquela paixão que bem poderia abalar as estruturas do poder.
Como ditaduras são sempre iguais,logo a moça acabou desaparecendo nos porões do sistema, sem o conhecimento do seu amado, que, por sua vez, não media esforços para encontrá-la.

O tempo foi passando e o ditador foi enlouquecendo sem notícias da sua amada. Após muito procurar, acabou tomando conhecimento da tortura e morte da moça, o que o levou a convocar uma rede nacional de radio e televisão e, sem medir as consequências, não poupou adjetivos para a ditadura e para o seu amor. Estava, assim, mesmo que tacitamente, revogado o decreto do adjetivo.

O povo sensibilizado com aquela história de amor e despertado para realidade do regime resolveu se mobilizar e derrubar a ditadura, que, por si só já dispensa maiores adjetivos, apesar destes estarem liberados para uso indiscriminado da população. E elegeram o ditador como presidente da república.


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