Antes da Visita

Thomas Domingues

- Bom dia – disse sonolento, sentando-se à mesa.
-Dormiu bem, filho? - Seu olhar continuava bastante tenso, mas, zelosa, encheu de suco o copo do garoto.
- Não, fiquei acordado a noite inteira. Só consegui dormir um pouco agora.
- Eu também não dormi.
- Deve ser péssimo dormir sozinha, depois de tantos anos – disse depois de um breve silêncio.
- É sim. – Seus olhos vermelhos anunciavam novas lágrimas.
- Vai ficar tudo bem. Tá acabando, mãe. - Terminou o suco e se levantou. Olhou para a janela, vendo o pé de goiaba que o pai plantou quando ele nasceu. - Não vai ter doce de goiaba esse ano.
- Não... – sussurrou a mãe, chorando baixo.
- Que horas é a visita? - Perguntou, depois de abraçá-la.
- Às onze, mas a UTI sempre atrasa para liberar. Não precisa sair correndo, desta vez.
- Nem pretendia, hoje levantamos mais cedo, vai dar tempo de chegar.
- Vou entrar e falar com o médico. Você quer entrar para vê-lo?
- Não sei se consigo.
- Eu não consigo não entrar.
- Eu não sou tão forte assim.
- A gente precisa ser. Por ele.
- Eu só quero que ele pare de sofrer, mãe.
- Eu... queria um milagre.
- …
- Vá tomar seu banho, daqui a pouco seu tio tá aqui. - Suspirou, preocupada – agora vou ter que passar em algum lugar e trazer almoço pra eles... não sei porque inventaram de avisar sua avó.
- É o filho dela, ela merece saber.
- Mas não dá pra gente ficar cuidando dela, não nessa situação.
- E você realmente acha que eles estão vindo sem saber disso? Capaz dela querer cuidar da gente. E eu deixaria.
- É, tem razão. Vai ser melhor se a gente tiver companhia.
- Família é pra isso, mãe. Quando o tio precisou, você e o pai estavam lá. E assim vamos tocando.
- Acho que minha irmã vem também. Quero ver caber tanta gente nesse apartamento.
- Calma, qualquer coisa eu durmo no sofá. Ou na minha cama, de tarde. De noite fico acordado mesmo.
- Já falei que você tem que tentar dormir a noite, não entendo essa sua mania de ficar acordado a noite inteira.
- Deixa eu, mãe, que coisa! Pra mim é mais fácil assim.
- É, mas não esquece que sexta-feira você perdeu hora pro serviço.
- Aquilo foi diferente, o celular não tocou.
- Tocou que eu ouvi.
- Se ouviu, podia ter me chamado então.
- Seu pai que fazia isso.
- Pois é...

Confinado



Stephanie Claro


- Borges, podemos começar?
- Começar?
- Onde está?
- Não tenho ideia...
- Na delegacia, não vê?
- Vejo que estou algemado...
- Por que está aqui?
- Não sei dizer...
- Pode fazer mais do que isso, Borges. Tomou os remédios?
- Tomei.
- Tem certeza?
- Quais remédios?
- Estes aqui na mesa, ao lado da sacola.
- ...
- Não tomou... Imaginei. O Dr. Yo sabe disso? Que já não toma os remédios?
- Não, ele não sabe...
- Onde está Carla, Borges?
- Carla? “Minha” Carla?       
- Apenas Carla... cadê ela?
- Em casa, eu acho... ela foi me visitar hoje...
- Então lembra?
- Lembrar de quê?
- De Carla.
- Cara, eu não sei do que você está falando!
- De Carla.
- Carla é minha namorada e está na minha casa! Ao menos é disso que me lembro!
- Como veio para cá, Borges?
- Eu não sei, porra!
- Veio por Carla. Lembra?
- Por Carla?! Ela está bem?!
- Diga.
- EU – NÃO – SEI!
- Sabe. Eu sei.
- Então me diga: cadê Carla?
- Qual parte?
- Como assim, qual parte?
- Qual parte dela você quer?
- ...
- Lembra?
- Cala a boca...
- Carla já não existe mais. É estranho, não acha? Como podemos ser tão fracos, seres tão insignificantes que, de uma hora para outra, sumimos. Carla era mais do que insignificante, não acha?
- Você não sabe o que fala...
- Ela lembrou da época da faculdade? Lembrou do rapaz esquisito, de dentes amarelos e tique nervoso? Ou será que a polpuda conta bancária fez com que ela esquecesse as humilhações que causou?
- Cala a boca, seu filho da pu...
- E Ana? E Júlia? Clara e Bel? Namoradas também? Advogadas e economistas... Mesmas faculdades de Borges. Lembra das humilhações?
- Isso tudo passou, eu superei.
- Percebo. Lembra?
- Lembrar do quê?!
- A sacola na mesa. Está vendo? Está vermelha. Quantas armas você têm?
- 13 facas.
- Agora 12. Uma já era. Sangue de vaca não sai da lâmina de um artefato de colecionador.
- O que isso quer dizer?
- Carla humilhou Borges. Borges matou Carla.
- Não pode ser...
- Sim, é... argh! Belo soco, Borges. Não é uma sensação sublime tirar o sangue de alguém? Parece que estamos saindo de um confinamento, e libertando também a alma de outra pessoa. Borges adora esta sensação, não é?
- ...
- Escute só... Alguém está vindo te ver também, Borges.
- Sr. Eduardo Borges, eu sou o detetive Aragão e... Meu Deus, o senhor está sangrando!
- Não foi nada, apenas um soco...
- Como assim? Seu rosto está sangrando!
- Sim, eu sei. Posso tomar meus remédios, por favor?

Dilema Chinês



Rodrigo Freitas Lubisco
Depois que o homem começou a colonizar outros planetas, muita coisa mudou aqui na Terra.Principalmente no que diz respeito ao crescimento da população, reduzindo consideravelmente a densidade populacional existente e, consequentemente,o consumo desenfreado dos recursos naturais do planeta, tais como água, alimentos, combustíveis fósseis e madeira.
A reprodução artificial do ambiente terrestre nos três planetas agora habitados por seres humanos, assim como a viabilização da transformação do enxofre em combustível, viabilizaram que as grandes potências da Terra em 2030 iniciassem os seus processos migratórios, cada qual para o seu planeta conquistado.
Os Estados Unidos e a Europa Unida, recentemente unificada, não estavam tendo dificuldades neste princípio de transferência de voluntários para os seus novos planetas. As famílias inscritas no programa eram muitas, a maioria vivia na mais baixa faixa de renda de seus países, e todas recebiam a garantia de que na nova casa haveria um espelhamento do regramento social dos respectivos países na Terra.
Já o mesmo não ocorria com a China. O país criou um regramento próprio para a vida dos seus voluntários, e a incerteza da vida extraterrestre sob novas regras sociais amedrontava os corajosos chineses que se interessavam pelo programa.
Foi neste clima que Liu Cheng alistou a si, à sua mulher e ao seu filho para a migração definitiva para Marte. O medo sempre permeou o pensamento do chinês, mas a miséria com que eles viviam no interior rural o fez tomar a decisão de desistir do quase nada que tinham para tentar uma nova vida no espaço.
A decisão foi comunicada à esposa, que prontamente a acolheu. Muito embora Liu não lhe tenha questionado a respeito, por não se tratar de assunto no qual a mulher devesse se meter, ela concordava que nenhuma vida em Marte poderia ser pior do que a sua pobreza.
A longa viagem de seis meses de duração estava transcorrendo tranquilamente, pois o governo chinês providenciara a maior segurança e conforto no aerotransporte para as quinhentas famílias que dariam início ao programa.
No final do quarto mês de viagem, após terminarem o jantar, a mulher de Liu chamou-lhe num canto e o avisou que tinha certeza que estava grávida. Já havia três meses que ela não menstruava, e sua barriga de gestante já começava a tomar forma.Havia desespero em sua voz, tendo em vista que, antes de embarcarem, haviam sido rigorosamente instruídos de que as famílias não poderiam ter mais de três elementos, e que o nascimento de uma eventual criança que desrespeitasse esse limite faria com que o governo obrigasse os pais a escolher qual dos filhos sobreviveria. Esta imposição, explicaram os governantes, tinha por objetivo evitar que a colônia espacial sofresse com os mesmos problemas que a China há muitos anos vinha sofrendo na Terra, de sorte que não haveria exceção a esta regra.
Liu simplesmente silenciou. Seu pânico ficou velado em sua cara fechada. Sabia que seria o responsável pela decisão final, e que esta, sem dúvida, seria a mais difícil e dolorida escolha de sua vida. Virou-se para caminhar sozinho sem nada dizer a sua esposa, que, após sua saída, derreteu-se em um choro surdo.
Somente se reencontraram na hora de dormir. Ao deitar em uma das camas dotreliche da família, Liu beijou seu filho, que já se encontrava adormecido, e simplesmente disse a sua esposa que resolveria aquela situação. Ambos tomaram suas pílulas de adormecimento forçado e se deitaram.
Ao acordar, a esposa levantou de sua cama e estarreceu:o marido de fato havia resolvido a situação rasgando sua própria garganta com a faca do jantar.


Acorda Amor



Daniela Bordoni Silva

No meio da noite acordo assustado. Vieram me buscar, os bastardos. O suor frio me escorre pela nuca, sento na cama e acendo um cigarro. É preciso acalmar os nervos. Espio pela fresta da cortina. Uma viatura escura parada na rua, um homem é tirado de casa À força. 

−Merda!

 Olho para Aninha. Dorme feito pedra. Sempre dormiu tranquila, a ingênua. Com um solavanco, a desperto do sono:

 −Acorda, amor! Tão levando o Tião.

 Ela me olha sem certeza com os olhos semicerrados. Aperto seus ombros, o desespero me tomando.

−Estão levando o Tião, entende?

Com um salto, ela se põe de pé espiando pela janela. Tremula leva uma das mãos à boca para abafar o choro, seus olhos me olham arregalados. Sabemos que sou o próximo. Abraço-a com força, como eu gostaria de não tê-la acordado... Deixava do lado da cama um bilhete (Fui passear. Hein, minha passarinha, viajar um pouco. Volto em alguns meses). Mas já está acordada, não tem mais remédio.
Olho firme em seus olhos trêmulos:

 −Não arruma encrenca, entende? Não chama a atenção. − As lágrimas já me desciam pelo rosto, a garganta queimando−Se eu não voltar em um ano me esqueça, compreende? Segue com a vida.
Escuto um tumulto do lado de fora, os homens já estão vindo. Trago meu cigarro mais uma vez e o apago. Olho para Aninha, tão linda quando a conheci. Agora pálida e encolhida feito uma ratinha, o fogo dos olhos apagados.  Parece até que envelheceu, cinco anos em três minutos. Culpa deles, esses putos. Abraço-a com força e beijo sua boca com amor e desespero.  Arrombam a porta. Em poucos segundos me alcançam no quarto me tirando do abraço, do beijo apaixonado, o gosto da paixão desesperada ainda na boca.

Aninha chora, os braços erguidos me chamando. Mãos fortes me arrastam para fora de casa. A garganta que arde em brasa mata meu grito. Esse grito que vem do peito e engasga na boca. Um grito mudo. E de que me serve? Sinto um golpe na cabeça, o sangue descendo pelo rosto. Apago com meu grito mudo.


Papo Reto


Carlos Eduardo Simão

Aí, na moral, eu já até pensei em mudar de vida. É sério. Pensei mesmo. Tudo podia ser diferente comigo se na minha vida tudo não fosse tão diferente. Eu sei que parece sinistro, mas não é não. É papo reto. É de boa que eu falo isso. Aí essa parada de mudar de vida eu só pensei, tá ligado.

Eu nasci e fui criado aqui na favela mesmo, numa pobreza desgraçada. Nunca conheci meu pai. E até hoje eu não sei quem ele é. E é até bom não conhecer. É menos um pra eu mandar pro inferno e safar a minha barra com Deus.

Minha mãe morreu quando eu tinha dois anos. Me deixou com minha avó, que só cuidou de mim até eu crescer mais um pouco. Tipo assim, chegar a uns seis anos mais ou menos. Aí depois ela passou a me explorar feito um escravo jogava na minha cara o tempo todo que se eu comia, bebia e dava despesa pra ela que eu também podia pôr dinheiro dentro de casa. Foi aí que ela me mandou pedir dinheiro na rua, no sinal, no ponto de ônibus ou em qualquer outro lugar onde tinha um monte de gente que podia ter pena da minha cara de cachorro sem dono. E quando eu chegava em casa sem dinheiro? Ela me enfiava a porrada. Me batia até quase me matar e ainda me deixava sem comida. Aí véi na moral, minha avó era a pessoa que eu mais odiava nesse mundo.

Não manjo nada dessas parada de escola. Sei ler muito pouco e escrever menos ainda. Mal assino o meu nome. Mas ninguém me tira de otário e nem tira sarro com a minha cara. Minha avó vivia sendo chamada lá no colégio por causa do meu mau comportamento. E quando nós chegava em casa ela me batia de novo e eu ficava com mais raiva dela.

Quando fiz dez anos eu fugi da casa da minha avó. Prometi pra mim que voltava lá pra matar ela e fui morar na rua. Daí eu conheci uma galera muito sinistra e comecei a usar droga e depois eu passei a vender as parada numa boca lá da favela. Com doze anos eu já era responsa, considerado na boca e tudo. Aí eu achei que o dinheiro que eu ganhava vendendo droga (eu vendia droga pra caralho!) era pouco pra mim. Cheguei junto do traficante meu chefe e mandei a real pra ele. Pedi uma sociedade. Sabe o que o filho da puta fez? Primeiro ele riu da minha cara. Depois me deu um chute na bunda e me mandou de volta pro meu posto. E disse que era pra eu não foder as ideia dele porque ele tinha coisa melhor pra fazer. Tinha um monte assim de novinha junto com ele. Todo mundo riu da minha cara.

E Daí? Porra, maluco. Daí que o traficante meu chefe foi a segunda pessoa que eu mais odiava nesse mundo, a primeira ainda era a minha avó. O oitão que eu usava era dele, tá ligado? Juntei uma grana e comprei um berro de verdade pra mim, uma pistola muito foda. Com o cabo cromado e o caralho. Na moral véi, o berro que eu mais gosto é pistola. Comigo não tem essas treta de fuzil não. Eu faço o caralho com essa peça que tá aqui. Aí no dia que eu fui prestá conta do movimento da boca não perdi o bonde e larguei o aço pra cima dele. Dei logo uns dez tiro no meio da cara do traficante meu chefe. Tomei a boca pra mim.

Depois eu fui lá na casa da minha avó. Primeiro dei uma surra nela que quase matei a velha. Ela se mijou toda de tanta porrada. Depois dei um tiro de oitão no meio da cara. Ela era tão vagabunda e desgraçada que não pagava nem uma bala da pistola. Eu não prometi que voltava lá pra matar ela? Então. Cumpri com a minha promessa. Eu sou um homem de palavra. Comigo bagulho é doido. Nunca mais aquela velha dos inferno vai bater em ninguém. Mandei ela pra vala. E tem uma munição aqui na minha pistola guardada especialmente pro filho da puta do sujeito que se diz meu pai. Esse é outro que não me escapa. Mais cedo ou mais tarde eu topo com ele.

Taí uma parada muito doida que eu não acho certo, é matar trabalhador. Meu pai é diferente. Ele é um escroto. Aqui na favela só vacilão é que vai pra vala. Vacilão é vacilção e sangue bom é sangue bom, tá ligado? Você deve tá pensando que eu sou um sacana que vive fodendo com a vida da comunidade, né não? Ai que você se fodeu. Pensou errado na parada.  Eu vou mandar a real pra você. Seguinte: aqui na comunidade quem manda sou eu. Eu sou o dono dessa porra toda, tá ligado? Essa galera toda come aqui na minha mão. 

Quando o cara tá com o filho doente e não tem dinheiro pra comprar o remédio e ele chega pra mim e me pede de boa e na humildade, porra eu vou lá e compro. Daí ela fica me devendo. Depois eu cobro do meu jeito. Quando acaba o gás aí na casa da dona Maria e ela não tem dinheiro pra encher a botija, pra quem você acha que ela pede o dinheiro? Porra, meu irmão! Você tá ligado que essa galera precisa de quem põe eles no rumo certo. Tudo que acontece aqui na comunidade eu fico sabendo. A galera tem que me bater a fita. Eu sou a lei aqui na favela. Tem mais é que me respeitar mesmo.  

Quando eu digo que tudo podia ser diferente pra mim é por causa de quê quando eu era moleque eu via, aqui na favela, as outras criança com pai, mãe e irmão. Gente que gostava deles e que protegia eles. Mesmo vivendo numa miséria do caralho. Eu queria ter o que eles tinha, mas não tive. Aí eu virei um vida loca e botei pra fudê na moral.

Dou ao mundo o que o mundo me dá. Roubo, mato, cheiro, trepo, fumo, trafico e faço o que eu bem entendo. O que eu quero eu consigo por bem ou por mal. Pego as mulher que eu quero. Já comi um monte de novinha aqui na favela. E não tem esse negócio de policia entrar aqui no meu pedaço tocando terror na parada que eu meto bala na cara deles e boto todo mundo pra correr nessa porra!

Eu já tenho dezessete, mas tenho muita coisa ainda pra viver nessa vida. Aí anota tudo que deu pra você anotar. Grava tudo que deu pra você gravar que seu tempo acabou. Você não queria saber da historia da minha vida? Taí. Publica amanhã na primeira página do seu jornal e diz pros bacana do asfalto que quem manda aqui na favela não é governo, não. Quem manda aqui nessa porra sou eu.

Persona non grata



Carlos Eduardo Simão

- Senhores jurados e demais membros desta corte da cidade-sideral de Neo Paulo. Eu, juiz Wilson Hill, no ano da graça de 2080, faço crer que o réu em questão será julgado com toda a lisura e transparência que nosso supremo Estado exige. Queiram sentar-se. Que comece o julgamento. Seu nome?   

- Roberto.

- Roberto de quê?

- Roberto Hobb.

- Senhor Hobb, jura dizer a verdade e nada mais que a absoluta verdade?

- Sim senhor.

- O senhor está sendo acusado de homicídio pela polícia da cidade-sideral de Neo Rio pelo assassinato de uma RoboGirl dentro de um motel-sex-space no ano de 2078.

- Senhor Meritíssimo, declaro diante desta corte que matei em legítima defesa.

- Sua declaração é totalmente inverossímil a esta corte, senhor Hobb uma vez que não há a menor possibilidade de tal fato acontecer.

- Senhor Meritíssimo volto afirmar que digo a mais absoluta verdade.

- Impossível. Está, por acaso, tentando nos fazer passar por idiotas, senhor Hobb?

- Não, Senhor Meritíssimo. Eu só estou dizendo que...

- Todos nós sabemos que RoboGirls são bonecas cibernéticas criadas e rigorosamente programadas somente para proporcionar prazer sexual. Por conseguinte é absolutamente inadmissível a hipótese de que uma RoboGirl possa tentar contra a vida de um ser humano.

- Senhor Meritíssimo, eu posso provar o que estou dizendo.

- Senhor Hobb, devo lembrá-lo de que desde a assinatura do tratado de Frankfurt, em 2071, oficializando as bonecas cibernéticas como agentes de saúde pública, tendo sua denominação de fábrica alterada para RoboGrirl, as RoboGirl passaram a ser propriedade do governo. Portanto senhor Hobb, todo e qualquer atentado contra um agente oficial é, portanto, um atentado contra o próprio Estado.

- Senhor Meritíssimo, afirmo mais uma vez que eu...

- Senhor Hobb, pelo que consta nos autos do processo, o seu sexcard é falso. Ou seja, o senhor não tem autorização sequer para se aproximar de uma RoboGirl. Muito menos para desprogramá-la. Não satisfeito o senhor foi além; o senhor desativou e destruiu uma propriedade do governo. Esta corte não terá clemência.

- Senhor Meritíssimo, o Estado não pode condenar um homem por se defender do ataque de uma máquina.

- Não cabe ao senhor dizer o que o Estado deve ou não deve fazer, senhor Hobb. Sabemos quem é o senhor, o seu ataque foi premeditado. O senhor nos insulta com sua ingenuidade ao ignorar o fato de não haver mais mulheres entre nós desde que elas foram hibernadas ou deportadas para as colônias penais nas luas de Saturno.

- Eu odeio RoboGirls, senhor Meritíssimo. Odeio tudo que esta corte representa. Não nego que a assassinei. Com que prazer destrui cada peça, cada circuito e cada mecanismo daquela aberração. Bonecas cibernéticas não são a solução para evitar a propagação do vírus mortal. Esta corte pode me condenar. Pode me matar se quiser. A nossa causa não morrerá comigo. Ela já foi disseminada por todas as cidades-siderais. Outros se levantarão em prol da resistência. A guerra já foi declarada. 


- Senhor Hobb, quanto à sua causa inútil devo informá-lo de que o Estado já providenciou medidas coercitivas para neutralizar e eliminar o seu bando de subversivos– o juiz se vira para o público e para o júri - Diante de tal declaração tão peremptória e de todas as provas anexadas nos autos do processo. Este júri, esta corte e o poder a mim conferido pelo nosso sagrado Estado, declararam que o réu foi condenado à pena de expulsão perpétua. O senhor foi sentenciado a viver exilado em um satélite prisional de Júpiter sentença que deverá ser cumprida total e integralmente desde já. O réu Poderá ser visitado esporadicamente sob a vigilância ampla geral e irrestrita da aliança interplanetária dos estados intergalácticos. Declaro encerrada esta audiência.

No céu e na terra



Stephanie Claro

A lei da gravidade afirma que todo corpo é puxado para o centro da Terra e esta, por sua vez, se move em direção aos objetos que lhe são lançados. Em Printipia essa lei também é válida, exceto para uma situação: suicídios. Quando uma pessoa se mata, ela não cai: ela voa.

A paisagem repleta de corpos flutuantes aterrorizava os turistas e, com isso, os ganhos recebidos pelos governantes com a taxa de receptação de passageiros vindos de outros lugares teve uma queda estrondosa, fazendo com que uma ação fosse tomada.

Em vez de tratar o assunto como uma calamidade, o departamento de marketing de Printipia reverteu a situação e transformou as mortes em um negócio rentável: o lugar passou a ser conhecida como a “cidade dos corpos flutuantes”, ou, como a chamavam na mídia, “Corpus Au Air”.

O plano funcionou e a cidade viu as acomodações de seus hotéis ficarem lotadas: pessoas de todos os lugares vinham tirar fotos com os famosos balões.

Todos olhavam para o céu, maravilhados com a incrível aurora criada pelas cores das peles dos mortos, as listras de suas roupas e a agonia de suas faces. O mundo olhava para o alto e, por isso, não percebeu quando um corpo apareceu no centro da rua, logo em frente ao Palácio de Printipia; mas a situação não parou por ai: dia após dia corpos brotaram em frente ao Palácio, criando uma espécie de jardim grotesco de cadáveres.

Printipia foi tomada pelo furor da notícia: corpos foram encontrados, e eles não voavam. Demorou um pouco para entenderem que a situação era atípica, pois não se tratavam de suicídios: haviam sido assassinados.
        
       Ao todo foram reunidos nove corpos: todos homens. Não era necessário muito estudo ou análise para descobrirem quem eram: antigos padres, velhos sacerdotes das catedrais esquecidas. Em Printipia não vigorava mais nenhum tipo de religião ou devoção, a não ser o culto ao individualismo e ao governo regente.
               
        As atenções estavam voltadas para o solo daquela cidade e, desta forma, apenas após o aparecimento de uma enorme sombra junto ao castelo é que perceberam que havia outro corpo de padre – desta vez, flutuando.
       
         Análises foram feitas e, assim, descoberto que todos os homens foram envenenados. Após uma série de xícaras de café e inúmeras tarde perdidas, o quebra-cabeça foi completado: uma carta foi encontrada junto ao corpo do padre suicida.

       Segundo ele, aqueles homens acreditavam na sua religião e a situação em que se encontrava Printipia naquele momento era o oposto de seus ideais e de suas convicções. Desta forma, após uma última celebração de sua fé, os padres fizeram um pacto: durante dez dias cada um ia morrer em frente ao Palácio; mas não se matariam, seriam mortos por seus amigos – cada padre mataria o outro. Seria um protesto contra a cidade e seus governantes: uma mancha de sangue no tapete verde do jardim do Palácio.

         Desta forma, dia após dia, um corpo caia no chão de Printipia e, no último dia, um outro levantou voo. O pacto estava finalizado.

        Investigações concluídas, o departamento de marketing resolveu tomar uma atitude: preencheu cada um dos corpos com gás e os lançou junto ao corpo do padre suicida, de modo a formar um excêntrico monumento ao redor do Palácio.

           Apesar do ato contra a cidade de Printipia, os governados resolveram prestar uma última homenagem aos padres: estes, estudiosos de uma religião esquecida, agora estariam para sempre no céu, e não na terra.
                    

                                

Antonia



Carlos Eduardo Simão

- Alguma coisa ruim vai acontecer!

Minha mãe era assim, sensível.  Na verdade a palavra que a definia bem é sensitiva. Ela tinha dessas coisas e quando cismava que algo ruim estava para acontecer era certo; acontecia.

Quando meu tio Antonio morreu em um acidente de carro minha mãe o alertou, ou melhor, o alarmou durante uma semana. Ela teve um presságio. Certeza de que algo muito grave ia acontecer ao seu irmão gêmeo na estrada. Ele ria, tentando disfarçar o incômodo, e dizia:

- Isso é excesso de zelo.

Tio Antonio era caminhoneiro. Naquele dia quando voltava do Rio para São Paulo, seu caminhão bateu de frente com outro caminhão que transportava combustível na via Dutra. Houve uma grande explosão, segundo os jornais. Naquele instante minha mãe foi sacudida por um calafrio. Ela largou a máquina de costura onde trabalhava e saiu gritando pela casa.

 - Toninho morreu!

Horas depois um telefonema confirmou a previsão de minha mãe.
Coisas ruins acontecem todos os dias em todos os lugares do mundo, de modo que dizer isso é apenas repetir mais do mesmo. Entretanto, todos nós passamos a considerar às premonições da minha mãe depois do episódio fatal com o tio Antonio.
Seu dom não era nenhum poder sobrenatural ao ponto de fazer previsões sensacionalistas sobre a vida de gente famosa como artistas de televisão, cantores, ou políticos. Nada disso. Ela só desenvolvia essa sensibilidade quando algo de ruim estava para acontecer com alguém da nossa família. Quando ela repetia a sua indefectível frase a família toda ficava em estado de alerta e todos se perguntavam: quem será a próxima vítima da Antonia?

Minha mãe não se recuperou da morte do seu irmão. Ela deixou de ser a mulher divertida e comunicativa que sempre foi e passou a ser uma pessoa arredia e soturna. Um ano após a morte do meu tio ela voltou a ter suas premonições. Ela voltou a ficar inquieta novamente. Andava pela casa toda preocupada buscando identificar quem da família estava correndo risco de morte. Eu e meus irmãos - somos quatro - morríamos de medo da minha mãe quando ela ficava assim. Era como um fantasma andando pela casa. Meu pai ficou tão preocupado que ameaçou interná-la caso ela não desse um jeito de por um fim àquele absurdo.

Mamãe se defendeu dizendo que ele poderia até interná-la, se quisesse mesmo assim não deixaria de sentir que algo de ruim estava para acontecer com um membro da família. Mas desta vez era diferente, ela não conseguia visualizar com certeza quem seria a vítima daquele presságio ruim. 

Meu pai então reuniu a família toda na sala e nos falou do seu medo e da sua preocupação em relação a nossa mãe. Ele disse que desta vez era diferente das outras vezes como quando aconteceu com tio Antonio, por exemplo. Naquela ocasião ela sentiu algo estranho no ar. Ficou triste e preocupada. Disse que ele seria vítima de um acidente como de fato aconteceu. Agora era diferente. Ela Vinha tendo pesadelos horríveis à noite. 

A cada dia que passava a situação da minha mãe só piorava. Ela não conseguia dormir e também não deixava ninguém dormir. Ficava andando pela casa a noite toda. Ás vezes ela entrava no nosso quarto e ficava do nosso lado nos olhando enquanto dormíamos. E chorava até meu pai chegar e levá-la de volta para o seu quarto, onde continuava chorando. Uma noite eu vi minha mãe parada no meio do quarto. Chorei junto com ela.

Meu pai, na verdade, não sabia mais o que fazer para amenizar o sofrimento da minha mãe. Ele sugeriu levá-la ao médico. Ela retrucou e disse que não seria necessário. Tão logo ela pudesse ver quem seria a vítima de tais pressentimentos ruins tudo aquilo passaria. E ela teria paz novamente. Meu pai concordou, mas chegou a cogitar a possibilidade de minha mãe ter rompido o fio tênue que separa a razão da loucura.

O aniversário dela seria por aqueles dias. Mamãe estava para completar 40 anos. E toda a família se empenhou em fazer uma grande festa. Na noite anterior ao seu aniversário enquanto todos nós estávamos ocupados com os preparativos da festa minha mãe se recolheu ao quarto mais cedo. Ela não se sentia muito bem.


 Então nós ouvimos o barulho. Um estampido seco vindo do quarto. Toda a família correu. Meu pai foi na frente. Quando ele abriu a porta minha mãe estava caída sobre a cama. Uma enorme mancha de sangue molhava sua blusa na altura do coração. O revólver 38 pendurado em sua mão ainda fumegava pelo disparo.

O vestido azul



Bruno Paiva


          Por mais que Virgínia olhe, não consegue se reconhecer na imagem que vê no espelho. A quietude do quarto contrasta com o tremor das mãos da menina, que temos cabelos loiros desgrenhados e o rosto abatido, com olheiras escuras, cavadas pelas lágrimas que ameaçam cair mais uma vez. Em sua companhia só estão as bonecas e os bichos de pelúcia empoeirados, todos em cima da cama, assim como ela própria.De repente, o rosto de Virgínia se contorce de dor. Ela leva as mãos à barriga levemente inchada, escondida dentro do vestido grande. Talvez seja só mais um enjoo.  

            Um barulho fora do quarto chama sua atenção. A respiração de Virgínia fica ofegante. Uma gota de suor escorre da nuca até as costas; a julgar pelo arrepio da pele, o suor é frio como gelo. Os olhos da menina agora observam a porta velha e descascada que a separa do mundo lá fora.

            Mais alguns segundos até uma voz grave perguntar:

            –Virgínia? O que é que deu? Fala!

            Ela não diz nada. A voz presa dentro da garganta. 

            O homem insiste:

            – Virgínia! Tá me ouvindo? Abre essa porta! Agora!

            A porta é forçada, mas está trancada.Virgínia tapa os ouvidos com força. A voz do homem parece aumentar seu enjoo.

            –Virgínia, fez o teste que eu te dei? Do jeito que eu te ensinei? Fez?

            A voz do homem soa sufocada, quase sumindo no final. Virgínia olha para a pequena caixa retangular jogada aos pés da cama e o bastão de cor azul na ponta, molhado de urina. O azul do bastão lembra a cor do vestido que cobre seu corpo.

            – Virgínia, tô preocupado com você. Só quero o seu bem. Você sabe disso, né? Eu não vou te machucar! Eu cuido de você sozinho! Sua mãe não tá mais aqui. Somos só nos dois e você ainda faz isso comigo?

            A menina não responde.

           – Virgínia, fala comigo! Você parece tanto com a sua mãe. Seus olhos, sua boca... e quando põe aquele vestido azul que era dela... eu me sinto tão só, mas eu tenho você.

            A menina mantém os olhos fixos no bastão molhado. Parece não entender direito o que está acontecendo.

            O homem volta a gritar, agora mais alto:

            – Fala alguma coisa! Você sabe que a culpa é toda sua! Por que você não faz o que eu mando, Virgínia? Eu sou sozinho, trabalho o dia inteiro pra te sustentar! Por que você não tomou o remédio que eu te dei naquele dia? Responde! Fala com o seu pai!

            Mais batidas fortes na porta. Virgínia levanta da cama e vai até a janelado quarto. Olhando para fora, parece medir a altura entre o andar onde está e o chão. Há um sorriso estranho em seu rosto.



A água do Seu Tobias



Yvonne Morozetti

Há dez meses não víamos uma gota de chuva na região, era a pior seca dos últimos quarenta anos. Os moradores da megalópole haviam até esquecido os dias difíceis de racionamento que experimentaram no ano de 2015. Naquela época o racionamento não era oficial, embora faltasse água diariamente na maior parte das residências.

Dessa vez, apesar de não haver chuva, a água era abundante na casa do Senhor Tobias. Jacira aproveitara para tomar banho e até lavar umas peças dos uniformes das suas crianças durante a estiagem.Ela nunca tinha entendido direito o porquê da existência de água na casa do seu patrão.

Mesmo a piscina foi usada durante todo o período de estiagem. Ela ouvia às vezes umas conversas entre o Senhor Tobias e Dona Mariela. E também entre a Julinha e suas amigas. Parece que a água não faltava porque era ele quem promovia o fornecimento. Já fazia dez anos que ele tinha saído da empresa de água, mas continuava a prestar o mesmo serviço. E até ganhava mais, parecia, pois dava para ver pelas viagens, carros e festas que faziam. O mais engraçado é que ele trabalhava de casa, pelo telefone e atendendo pessoas que entravam e saíam do seu escritório sempre carregando aquelas malas de executivos.Ele tinha alguns empregados, que também deixaram a empresa de água do Estado e passaram a trabalhar para ele. Ele era conhecido como o “rei dos dutos”. Ela não sabia o que isso significava, nem ninguém lá no meu bairro sabia.

O mais engraçado é que ele vendia “combos”. Essa palavra Jacira já tinha ouvido na televisão, mas não sabia que tinha a ver com água, pensava que era coisa de filme.O “combo” que ele vendia tinha a ver com água e com luz. Na região onde ele morava também nunca faltava luz. Nunca vira também uma conta de luz ou de água chegar pelo correio.

Mas todos os seus vizinhos ricos tinham piscina e as casas todas iluminadas. Jacira gostava de trabalhar lá, parecia que todo dia entrava em outro mundo, muito diferente de onde vivia. Podia tomar o tanto de água que quisesse, lavar o quintal e os banheiros, as roupas e os carros, sem medo de faltar. E aproveitava para tomar banho também antes de sair do serviço.

Ela tinha ouvido no noticiário que havia uma quadrilha desviando água da empresa pública. A polícia suspeitava que era chefiada por um ricaço, desses que moram em mansões, têm carros importados na garagem e viajam regularmente para o exterior, assim, como o Sr. Tobias, seu patrão. Não conseguiam prendê-lo porque ele fazia a fraude com tanta perfeição que nem a polícia técnica conseguia identificá-lo. Diziam na igreja que quando isso acontecesse, não sofreriam mais da falta d’água, que era desviada para servir as mansões. Jacira, apavorada, torcia para que a quadrilha fosse presa e agradecia a Deus todos os dias por trabalhar na casa do Sr. Tobias, pois sentia menos a força da estiagem.


Sem Adjetivos

Luiz Otavio de Souza Matta


Depois de quase cem anos de democracia, o Brasil caía novamente em um regime de ditadura. Mesmo eleito pelo povo, o ditador, com suas ideias de ordem e de tolerância zero, aos poucos foi conquistando o povo e acumulando sem maiores problemas todos os poderes da República. Recentemente, assumiu também a presidência da Academia Brasileira de Letras. Como mandatário da nossa língua, o ditador, através de mais de um dos seus decretos, proibiu o uso de adjetivos, tanto na linguagem escrita, como na linguagem falada.

Tal medida, como as demais determinações daquele período de exceção, tiveram pouca resistência da população, já que o estado de ordem, o individualismo e a indiferença das pessoas se encaixavam bem com aqueles tempos de caos, degradação e de vida dominada por máquinas.

A imprensa já censurada, pouco ligou. Nas redes sociais, cada vez mais vigiadas, as pessoas se limitavam a “curtir” determinadas coisas e pessoas, sem a necessidade de se preocuparem com maiores qualificações. Os poetas, quando não eram calados, também não ligavam,afinal, pouco existia no país que valesse um elogio, até a natureza, outrora festejada, agora carecia de encantos. Até mesmo o narrador que vos fala teve que se virar sem os adjetivos.

No meio de tanto marasmo, o ditador estava cumprimentando a população em uma praça, na comemoração de mais um ano de ditadura, quando avistou uma moça e ficou apaixonado. Logo a notícia chegou aos ouvidos dos assessores da presidência, que não tardaram em procurar a moça para marcarem um encontro. O que eles não esperavam era a falta de empolgação da moça com a honraria recebida e principalmente a sua indiferença em relação ao próprio ditador. Sempre que era indagada, seja pelos agentes do governo, seja pelas pessoas próximas, sobre o que ela achava do ditador, ela respondia: -“Por força do decreto 201.578/2081, estou proibida de usar adjetivos de qualquer espécie, é melhor evitar problemas”.

Após muita insistência, a moça finalmente foi se encontrar com o chefe da nação e não demorou muito a ceder aos seus encantos. O que para os conselheiros da presidência não passaria de uma aventura, logo se tornou algo sério, já que a paixão persistia.
Apesar do amor, que naquele ponto a moça já começava a demonstrar, o ditador não se conformava em não saber o que ela realmente pensava sobre ele. Assim, o presidente resolveu derrogar o decreto que proibia o uso de adjetivos, admitindo apenas adjetivos elogiosos ao ditador e à ditadura.

A medida pouco efeito surgiu, pois, logo após a sua promulgação, a moça, ainda na cama do ditador, disse:

- Infelizmente,meu amor,não tenho elogios para o ditador e muito menos para a ditadura.
A sinceridade da moça deixou o ditador transtornado.Agindo com cólera, já que não conseguia distinguir o homem do ditador, acabou por expulsar a moça do palácio, mesmo antes do raiar do dia.

Como era comum naqueles tempos, ao se dirigir para a sua casa, já tarde da noite, a moça acabou sendo sequestrada a mando dos assessores do governo, que pensavam que assim livrariam o ditador daquela paixão que bem poderia abalar as estruturas do poder.
Como ditaduras são sempre iguais,logo a moça acabou desaparecendo nos porões do sistema, sem o conhecimento do seu amado, que, por sua vez, não media esforços para encontrá-la.

O tempo foi passando e o ditador foi enlouquecendo sem notícias da sua amada. Após muito procurar, acabou tomando conhecimento da tortura e morte da moça, o que o levou a convocar uma rede nacional de radio e televisão e, sem medir as consequências, não poupou adjetivos para a ditadura e para o seu amor. Estava, assim, mesmo que tacitamente, revogado o decreto do adjetivo.

O povo sensibilizado com aquela história de amor e despertado para realidade do regime resolveu se mobilizar e derrubar a ditadura, que, por si só já dispensa maiores adjetivos, apesar destes estarem liberados para uso indiscriminado da população. E elegeram o ditador como presidente da república.