A bordadeira que bordava histórias




Maria Beatriz Sampaio Silva

Depois daquele dia, Laila nunca mais foi a mesma. Tudo começou por causa de uma solteirona que se mudara havia pouco para o prédio defronte do seu. Bordadeira de mão cheia, mal o sol raiava, lá estava ela, na sacada, com seu bastidor, suas agulhas e linhas coloridas. Ali passava o resto do dia. Muito educada, falava baixo e sorria com parcimônia. Em seu aniversário de quarenta anos, Laila resolveu convidá-la para a festa.

A vizinha chegou meio acanhada, com um presente caprichosamente embalado em papel de seda e disse à aniversariante:

- Trouxe-lhe uma toalha bordada. Tirei o risco de sua história.

Laila não entendeu bem o que ela estava dizendo, mas não dava para abrir o embrulho na hora, tinha que receber os outros convidados. Agradeceu e colocou-o no baú dos presentes. Não viu mais a vizinha naquela noite. “Deve ter se sentido deslocada e foi embora”, pensou sem remorso.
Terminada a festa, sentou-se no chão junto ao baú para desembrulhar os presentes, mas, sob o efeito das taças de champanhe que havia tomado, sentiu uma zonzeira boa e resolveu deixar aquela tarefa para mais tarde, adormecendo ali mesmo.

Acordou com o sol batendo em seu rosto e, com os olhos entreabertos, viu que as persianas estavam recolhidas. Achou estranho. Tinha certeza de tê-las abaixado tão logo saíra o último convidado. Voltou-se para os presentes do baú e se lembrou do delicado embrulho da vizinha. Remexeu, revirou tudo e não o encontrou. Bateu o olho em sua mesa de vidro e sentiu um calafrio na espinha: sobre ela havia uma toalha bordada.Laila nunca tinha forrado aquela mesa, achava bonito o vidro descoberto, deixando à vista os pés de ferro torneados. Seria aquela toalha o presente da vizinha? Mas quem a teria colocado ali? Levantou-se com dificuldade e foi examiná-la de perto: nela estavam bordadas, em pontos de sombra, cenas do que lhe pareceu ser um casamento medieval. Lembrou-se das palavras da vizinha e teve uma vertigem, seus joelhos dobraram-se e ela teria caído se duas mãos fortes não a tivessem amparado.

Ao sentir a rígida e gélida textura do corpo que se encostava ao seu, assustou-se e se afastou. Estupefata, viu um cavaleiro que parecia saído das histórias da Idade Média: vestia uma armadura e o rosto estava encoberto por um gorro inteiriço, de tela, que deixava à mostra apenas um par de olhos violeta e as grossas sobrancelhas. No canto da mesa, um elmo medieval confirmava a estranha presença.

Laila teve nova vertigem e delicadamente o cavaleiro a carregou para o quarto e a acomodou na cama, recostando-a em confortáveis almofadas. Pegou na mesinha de cabeceira um bule de barro que exalava um aroma exótico e deitou seu conteúdo fumegante na xícara, aproximando-a dos lábios entreabertos da moça.Ela sorveu devagar aquele chá, que a aqueceu, e lançou ao cavaleiro um olhar comovido. Ele então fechou as pesadas cortinas, tirou o gorro, beijou-lhe a boca e saiu do quarto. Estranhamente, aquela cena pareceu a Laila totalmente familiar. Em poucos minutos, ela sentiu as pálpebras pesarem, e os longuíssimos cílios ruivos cerraram-separa o justo sono.

Quando despertou, muitas horas depois, se sentia com o vigor de seus vinte anos. Foi ao banheiro e lavou o rosto. Seus poros exalavam um cheiro extravagante, e ela imediatamente se lembrou do acontecido. Correu até a sala e não encontrou ninguém. Foi à janela e não viu a vizinha e seu indefectível bastidor. Entretanto, chamou-lhe a atenção o brilho de um objeto dependurado no prego da parede lateral da sacada; espantada, viu que era um elmo medieval.

Em meio a silogismos inúteis, pegou rispidamente a toalha, com a intenção de jogá-la no lixo. Mas, surpreendentemente, o bordado anterior havia sumido. Em seu lugar, estava bordada, em ponto cheio,uma cena de tango na penumbra de um cabaré. No minuto seguinte, a sala ficou a media luz e ouviram-se os primeiros acordes de famoso tango argentino.

Gatos e feijões



Fabiana Correa

Era uma vez, um gato com asas. Miguel sonhara com ele desde pequeno e conseguiu torná-lo realàs vésperas de seu nonagésimo aniversário, quando celebrava a chegada do século XXII apoiado em sua bengala de titânio russo. Agora, satisfeito, descansava sentado na varanda magneticamente flutuante sobre o quintal, observando o gato voar assustado, fugindo da imagem de seus bisnetos. Estalando os dedos,chamou o gato que foi seguido pelos meninos. O primeiro aninhou-seem seu colo enquanto as crianças sentaram-se no chão e pediram ao Biso Guel para lhes contar a história de Ícaro, o gatinho.Era uma vez, um gato com asas. Miguel sonhara com ele desde pequeno e conseguiu torná-lo realàs vésperas de seu nonagésimo aniversário, quando celebrava a chegada do século XXII apoiado em sua bengala de titânio russo. Agora, satisfeito, descansava sentado na varanda magneticamente flutuante sobre o quintal, observando o gato voar assustado, fugindo da imagem de seus bisnetos. Estalando os dedos,chamou o gato que foi seguido pelos meninos. O primeiro aninhou-seem seu colo enquanto as crianças sentaram-se no chão e pediram ao Biso Guel para lhes contar a história de Ícaro, o gatinho.

Miguel, então, abriu o sorriso de sempre e contou a história começando com “era uma vez um menino que sonhava com um gato com asas”. O menino morava em um apartamento na Tijuca, com a mãe, a avó e o gato Gepeto, no décimo quinto andar de um prédio sem área de lazer, mas, da janela da sala, se podia ver uma fatia pequena do quintal da única casa da rua.Carmem, a mãe, era geneticista e trabalhava, sem medir dias e horas, em um laboratório de pesquisas de plantas transgênicas. Elabuscava a produção de alimentos ricos em anticorpos que dispensassem as vacinas.O menino não entendia muito bem o que a mãe não tinha tempo para lhe explicar, explicações eram com a avó Doralice. Ela dizia que o trabalho da mãe era inventar um feijão com uma vacina contra a dengue. Assim, as mães, ao invés de darem vacinas aos seus filhos, dariam feijões.

O menino não gostava de feijão, tanto quanto não gostava das agulhas de injeção e, por isso, achava que sua mãe deveria criar alguma coisa mais interessante, como um gato de asas que pudesse darumas voltinhas voando. Quando Miguel contou sua ideia para mãe, ela disse que não tinha tempo para brincadeiras, pois precisava salvar a vida de algumas crianças. Eassim, o menino continuou preso no décimo quinto andar, olhando a vida de longe enquanto alisava os pelos de Gepeto. O tempo passou, o menino estudou e se tornou geneticista, quase como sua mãe. Ele não foi trabalhar com vacinas e feijões transgênicos, mas sim em um laboratório de clonagem que prometia devolver ao dono de um animal falecido outro igualzinho, mediante o pagamento substancial de uma determinada quantia. A mãe do menino morreu de desgosto por ver o filho gastar ciência em modismo. O que ela não sabia era que ele tinha o plano de fazer uma rica poupança para financiar o seu próprio projeto: um gato com asas.  Por décadas, o menino crescido driblou várias crises financeiras, guardou seu dinheiro, fez da ciência, sua vida, investiu em tecnologia e montou um laboratório particular no quintal da própria casa. Já adulto,casou, teve um filho chamado Heitor e uma neta chamada Iara, que morava em Portugal com os filhos Pedro e João. Depois de uma vida de trabalho, quando já não era mais menino, e sim um bisavô, finalmente realizou o sonho de criança e, de seu laboratório, nasceu Ícaro, o gato sem botas e com asas.

Como sempre acontecia ao final da história, as crianças riram e aplaudiram. Depois saíram para brincar com o gato, já descansado. Iara, que ouvira o final da história, sentou-se ao lado do avô e perguntou:

- Resolveu aceitar o prêmio de geneticista do ano, vovô? Sabe como Ícaro e o senhor estão famosos, não sabe?

Com os olhos fechados para uma soneca, Miguel respondeu com poucas palavras.

- Não vou. Agora prefiro os feijões.

Iara permaneceu ao seu lado, lamentando que a holografia aproximasse distâncias sem permitir o calor do abraço.

Miguel, então, abriu o sorriso de sempre e contou a história começando com “era uma vez um menino que sonhava com um gato com asas”. O menino morava em um apartamento na Tijuca, com a mãe, a avó e o gato Gepeto, no décimo quinto andar de um prédio sem área de lazer, mas, da janela da sala, se podia ver uma fatia pequena do quintal da única casa da rua.Carmem, a mãe, era geneticista e trabalhava, sem medir dias e horas, em um laboratório de pesquisas de plantas transgênicas. Elabuscava a produção de alimentos ricos em anticorpos que dispensassem as vacinas.O menino não entendia muito bem o que a mãe não tinha tempo para lhe explicar, explicações eram com a avó Doralice. Ela dizia que o trabalho da mãe era inventar um feijão com uma vacina contra a dengue. Assim, as mães, ao invés de darem vacinas aos seus filhos, dariam feijões.

O menino não gostava de feijão, tanto quanto não gostava das agulhas de injeção e, por isso, achava que sua mãe deveria criar alguma coisa mais interessante, como um gato de asas que pudesse darumas voltinhas voando. Quando Miguel contou sua ideia para mãe, ela disse que não tinha tempo para brincadeiras, pois precisava salvar a vida de algumas crianças. Eassim, o menino continuou preso no décimo quinto andar, olhando a vida de longe enquanto alisava os pelos de Gepeto. O tempo passou, o menino estudou e se tornou geneticista, quase como sua mãe. Ele não foi trabalhar com vacinas e feijões transgênicos, mas sim em um laboratório de clonagem que prometia devolver ao dono de um animal falecido outro igualzinho, mediante o pagamento substancial de uma determinada quantia. A mãe do menino morreu de desgosto por ver o filho gastar ciência em modismo. O que ela não sabia era que ele tinha o plano de fazer uma rica poupança para financiar o seu próprio projeto: um gato com asas.  Por décadas, o menino crescido driblou várias crises financeiras, guardou seu dinheiro, fez da ciência, sua vida, investiu em tecnologia e montou um laboratório particular no quintal da própria casa. Já adulto,casou, teve um filho chamado Heitor e uma neta chamada Iara, que morava em Portugal com os filhos Pedro e João. Depois de uma vida de trabalho, quando já não era mais menino, e sim um bisavô, finalmente realizou o sonho de criança e, de seu laboratório, nasceu Ícaro, o gato sem botas e com asas.

Como sempre acontecia ao final da história, as crianças riram e aplaudiram. Depois saíram para brincar com o gato, já descansado. Iara, que ouvira o final da história, sentou-se ao lado do avô e perguntou:

- Resolveu aceitar o prêmio de geneticista do ano, vovô? Sabe como Ícaro e o senhor estão famosos, não sabe?

Com os olhos fechados para uma soneca, Miguel respondeu com poucas palavras.

- Não vou. Agora prefiro os feijões.

Iara permaneceu ao seu lado, lamentando que a holografia aproximasse distâncias sem permitir o calor do abraço.


Encontro Marcado



Carlos Eduardo Simão

Afonso escolheu o velho casarão abandonado para se encontrar com Helena. Certa vez ela disse que desde criança tinha uma curiosidade imensa de conhecê-lo sem nunca ter coragem de vir, pois, sempre ouvira dizer que o casarão era habitado por fantasmas e almas de outro mundo.

Ele desceu a pesada escada de pedra no fundo do largo corredor, que em tempos melhores foi uma das varandas que circundaram a velha mansão. O lugar fedia a mofo e urina. No chão de terra batida havia várias poças de água formadas pelas últimas chuvas que desceram pelo telhado já aos pedaços. O forro também mal resistia ao apetite faminto dos cupins.

Pichações gravadas em símbolos e códigos indecifráveis nas paredes de tijolo dobrado e latas vazias de tinta spray espalhadas pelo chão mostravam que o casarão se tornou também ponto de encontro de grupos de pichadores. A luz do sol que entrava pelas imensas aberturas em forma de arcos criava figuras geométricas nas poças de lama.
Helena, vestida de branco, se destacava no final do corredor engolido pelas sombras. Afonso abriu os braços para recebê-la.

- Que ideia, Afonso. Não tinha outro lugar pra marcar este encontro?

- Com medo, princesa?

- É claro. Sempre ouvi dizer...

- Que este lugar era habitado por fantasma e alma penada. – completou ele – Que besteira.

- Besteira nada. Nem sei como eu consegui chegar aqui. Quando eu abri aquele portão de ferro lá embaixo minhas pernas começaram a tremer.

- Relaxa, agora você está comigo. Eu não tenho medo de fantasma e nem acredito em alma de outro mundo.

- Só estou aqui por que você insistiu muito. Que coisa tão importante é essa que você tanto quer me contar?

- Tudo há seu tempo, minha querida. Tudo há seu tempo.

Enquanto Helena arrumava o cabelo Afonso a olhou de cima a baixo; estava linda dentro daquele vestido branco. Perfeita. Ele não resistiu e beijou-lhe à boca. Ela se apertou ainda mais junto ao peito dele. O coração batendo acelerado. Afonso passou o braço pela cintura dela e os dois entraram em uma grande sala que devia ter sido a sala de visitas do velho casarão. Quanta coisa deve ter acontecido aqui, ele pensou. Um salão enorme cujas paredes repetiam o mesmo estado de abandono da varanda. Palavras obscenas e declarações de amor junto a corações apaixonados atravessados por flechas certeiras foram pichadas por toda parte, depreciando o ambiente.

Uma cristaleira em estilo clássico coberta por teias de aranha e poeira centenária foi abandonada no fundo da sala. Vários objetos de louça foram deixados intactos dentro dela inclusive um camafeu com a foto de um casal. Um homem calvo, de barbas grossas e bem aparadas com o olhar sisudo e imponente por trás dos óculos, posava ao lado de uma mulher feia em sua aparência também sisuda e desconfiada. Afonso pegou o camafeu pela porta de vidro quebrado da cristaleira e leu os nomes gravados atrás da peça.

- Afonso, vamos embora daqui.

- Tenha calma, meu bem.

- Você ainda não me disse o porquê deste encontro.

- Este lugar tem muita história pra contar, você não acha?

Helena, um tanto incrédula, examinou todo o ambiente ao redor e depois encolheu os ombros num gesto de desinteresse.

- Que história, Afonso? Este lugar me dá medo e fede a abandono e à sujeira.

- Não seja tão impaciente Helena. Eu quero que você conheça a história desta casa. Uma história semelhante á nossa.

- Olha, Afonso, eu já conheço a história desta casa e não estou me sentindo bem. Vamos embora, por favor!

- Hum... então você sabe o que aconteceu aqui?

- Não sei e não tenho a mínima vontade de saber. Agora vamos sair daqui!

- Ok, sua medrosa. Vamos.

Helena tremia. Chegaram a outro cômodo repleto de móveis velhos, esquecidos e amontoados em um canto. Ratos, protegidos entre as sombras, transitavam livremente pelo assoalho. Passaram rápido pela cozinha, cujo local era o mais arejado da casa e o cheiro de coisa velha e molhada não era tão intenso, embora revelasse os mesmos sinais de abandono que os outros cômodos.

Lá fora, o mato tomava conta de todo o terreno. Os vestígios daquilo que um dia foi uma cocheira ainda resistiam ao tempo ao lado de uma pequena senzala também em ruínas. Afonso levou Helena até a entrada da senzala cujo portão destruído deixava o seu interior à mostra.

- Que lugar é este, Afonso?

- Aqui funcionou a senzala do casarão, meu bem.

- Credo! Como você tem coragem de vir a um lugar desses onde as pessoas eram torturadas? Posso sentir o sofrimento delas. – Helena observou o interior deteriorado da senzala - Os escravos ficavam presos naquelas correntes penduradas no teto?

- Sim. E ali era o tronco onde eles eram açoitados. A chibata ainda está intacta pendurada nele.

- Que horror! Até agora eu não entendi o que estamos fazendo aqui.

- Tá vendo este casal no camafeu?

- Quem são?

- Os donos deste casarão. Vou resumir a história deles pra você; eles foram os barões do café no século dezenove. O curioso nessa história é que eles se odiavam. E mesmo depois de casados continuaram se odiando. Cada um deles possuía seus próprios serviçais, de modo, que os escravos do marido não serviam à esposa e vice versa. O casal ficou famoso pela sua crueldade no trato com seus negros. Quando um acordava de mau humor ele torturava até a morte o escravo do outro por puro prazer. A tragédia definitiva aconteceu quando o barão descobriu a traição da esposa. Sabe o que ele fez?

- Não.

- Primeiro ele mandou matar o amante dela. Esquaterjou o corpo dele e entregou os pedaços para a família. Mandou trancar os escravos da mulher na senzala e ateou fogo. Depois foi a vez de a esposa ser amarrada ao tronco e morrer a chibatadas.

- Era essa história horrorosa que você queria que eu soubesse? Não entendi como essa história absurda é parecida com a nossa.

Afonso sorriu e acendeu um cigarro. Deixou que a fumaça fizesse desenhos no ar. Acariciou o rosto de Helena e disse:

- Traição.

- Que conversa é essa, Afonso? Que disparate.

- Eu sei de tudo, Helena.

- Sabe de tudo o quê?

- Tudo.

- Afonso eu não sei do que você está falando.

Afonso puxou Helena pela mão e a arrastou à força para dentro da senzala. Ela tropeçou em uma pedra e caiu no chão. Um par de braceletes de ferro enferrujado pendia em duas correntes amarradas ao teto. Afonso avançou sobre Helena e prendeu seus pulsos nos braceletes.

- Para com isso, Afonso! Me solta! Você tá me machucando! Eu vou gritar!

- Grite o quanto quiser. Você já esqueceu que este velho casarão sempre foi habitado por fantasmas e almas de outro mundo?

- Chega Afonso. Cansei da sua brincadeira sem graça. Me solta. Eu quero ir embora.

- Não vai, não. – Afonso se pôs na frente de Helena e pegou seu rosto com as mãos – Você não está em condições de exigir nada. Por que você me traiu Helena?

- Do que você está falando?

- Não se faça de inocente! – gritou Afonso.

- Eu não o traí.

- É claro que sim. É o que é pior... você me trocou por uma mulher! Você acha que eu vou aceitar isso?

- Que mulher, Afonso?

- A Ana.

- Ela é só uma amiga.

- Não é o que estou sabendo.

- É verdade! Quem anda enfiando essas idéias na sua cabeça, Afonso?

- Isso não interessa. – Afonso puxou Helena pelos cabelos – Você e essa vaca escrota que você chama de namorada armaram tudo. Só esperaram eu viajar para São Paulo para me sacanear.

- Não! Pelo amor de Deus, Afonso! Não é nada disso...

- Eu nunca gostei dessa sua amizade.

Afonso jogou Helena contra a parede frágil da velha senzala. Sacou o revólver e apontou para a cabeça dela. Engatilhou a arma. Helena ameaçou um grito que foi sufocado pelas lágrimas.

- Afonso, ouça! Vamos conversar!

- Chega de conversa fiada. A sua namoradinha vagabunda não terá o prazer de exibir você como um troféu na minha cara. Isso nunca. Eu vou acabar com ela também.

- Não Afonso! – Helena gritou – Pelo amor de Deus!


Afonso sorriu. Guardou o revólver na cintura e totalmente surdo às súplicas de Helena, foi até o tronco lá fora e voltou com a chibata nas mãos.  

O Caminho para a Glória



Jonattan Castelli


            Cara, vou te contar: a coisa não tá fácil. Essa vida de quartel não é exatamente o que imaginava. Tenho que admitir que tava meio influenciado pelos filmes de guerra, sei lá. O que tu pensa quando falo em exército? Guerra, né? Todo mundo que entra lá por vontade própria, que nem eu, sonha em pegar um fuzil e sair correndo pelo campo de batalha, mandando bala. O som dos aviões te sobrevoando, as bombas caindo, o cheiro de sangue, merda, pólvora. O barulho ensurdecedor. A necessidade em se ter que se confiar tua vida a outro homem, só porque ele tá vestindo o mesmo fardamento que tu, e ser capaz de se colocar em perigo para proteger esse desconhecido. Atirar primeiro, perguntar depois. E nem me olhe assim, na hora do vamo vê, a solidariedade termina. Não tem essa de “não vou matar um inocente” ou “esta guerra não é minha, os figurões que se matem”. O lance é o seguinte: sobreviver. É isso aí, velho. Adrenalina nas veias e nada na cabeça. Agir no automático e continuar vivo.
            Mas não tem nada disso. Quando me alistei, achei que ia participar de um Call of Duty da vida real, mas não. Passava a maior parte do tempo arrumando a minha cama, fazendo flexões e sendo um pau mandado de todo mundo. Até a porra do cavalo tinha mais regalia do que eu, caralho. Não sei o porquê, mas tinha a ideia louca de que iriam me ensinar a ser uma espécie de herói, eu tava completamente errado. Viagem total. E o pior, não tenho o menor talento pra ser soldado.
            Descobri isso logo na primeira semana. Me deram um rifle e não consegui acertar nenhum tiro sequer. Puta que pariu, nada! Tô te dizendo, velho, nadinha. Tenho bom preparo, sou um atleta, rápido, sou forte como um touro, mas um inútil com uma arma. Um perigo pra mim e pros meus colegas.
            Mas a maior das vergonhas não é não saber usar uma arma. Eu compensei isso com as granadas, ninguém lança granadas melhor do que eu. Se fosse americano poderia estar na liga de beisebol, de tão foda que sou. O pior foi um dia que fomos atravessar um rio. Ele era cortando por uma corda, com uma ponta amarrada em uma árvore em cada margem. A gente tinha que pegar as nossas coisas, se pendurar de cabeça pra baixo na corda e atravessar pro outro lado. Tu sabe que não sei nadar né? Então, velho, me apavorei. Minhas pernas e braços tremiam. Só conseguia me ver desabando na água e afundando que nem uma pedra. Olhava os outros e todos conseguiram. E eu ali, imóvel, me borrando nas calças. Daí chegou minha vez. Peguei minha mochila e coloquei nas costas. Cruzei a arma sobre meu dorso. Me pendurei na corda, que nem um bicho preguiça, e fui. Cada pegada que dava sentia os músculos dos meus braços fraquejando, meus nervos pareciam que iam se arrebentar. Olhei para baixo e vi aquela água, um poço sem fundo, me encarando. Caí. Velho, eu caí naquela merda de água gelada e afundei como pensei que afundaria. Podia ver a corda e o céu. A água entrou pelas minhas narinas, pelos meus pulmões. Gritei, mas só engoli mais água. O peso da mochila me puxava mais para baixo. Me debati, sem resultado. Eu ia morrer, velho. E de maneira vergonhosa, sem nunca sequer ter pisado em um campo de batalha. Sem honra. Sem heroísmo. Sabe aquele lance de se ver momentos importantes da vida passarem ante teus olhos? Velho, é verdade. Eu vi tudo. Meu primeiro beijo, com a Ritinha, minha primeira briga, a vez que ganhamos aquele campeonato de futsal. Meus pais, irmã, tu, todo mundo. E me perguntei: pra que isso tudo? Pra que morrer agora? Morrer num rio ou no campo de batalha, tanto faz, porque eu não quero morrer. E acho que tava chorando, mas como vou saber? As lágrimas se misturariam com a água.
Aí, quando já tinha até aceitado meu fim, ouvi uma voz. Era só um ruído, sem sentido, no início. Mas depois pude identificar algumas palavras e uma frase, era a voz do capitão. Ele dizia: soldado García, fique de pé! Soldado García! Fique de pé! García, seu veado, de pé!
E velho, tu não acredita, mas daí me apoiei no fundo do rio, com meus dois braços, me lancei pra cima e saí, livre. Respirei fundo, aliviado. Toquei no meu peito e o senti se expandindo. O ar inflando meu diafragma. Olhei para baixo e, caralho, a água não chegava a minha cintura. Uma vergonha, uma puta vergonha. Mas não foi por isso que larguei não, foi porque a porra da vida do quartel não é exatamente o que imaginava.
E pra ser sincero, velho, depois de eu quase morrer afogado não tenho a menor vontade de sair dando tiro em ninguém. Sabe, velho, essa história de herói de guerra é asneira. Call of Duty, uma bobagem. É muito fácil matar pra evitar ser morto. Heroísmo mesmo é se recusar a matar, mesmo quando tu tá na linha de frente. Até porque se o caminho para a glória for coberto por um tapete de sangue, prefiro essa minha vidinha ordinária mesmo, que já ta de bom tamanho.      
            J.R.C.

Porto Alegre, 31 de março de 2015.