E se eu não tivesse atravessado a rua?

Fernando Salles



Pelas contas que processei mentalmente enquanto ajeitava os óculos de sol, eram sete longos anos sem vê-la e sem trocar qualquer palavra com ela. Os mesmos cálculos eu refiz mais tarde para perceber que haviam se passado “apenas” cinco anos, quatro meses e doze dias. A saudade ofusca nossa percepção do tempo na mesma intensidade com que o sol baixo das tardes de inverno engana a visão. Mas eu estava, sim, enxergando direito: era ela quem vinha distraída na minha direção, sem se dar conta do reencontro iminente.

Nos primeiros meses depois de seguirmos caminhos diferentes eu andava por aí de olho em todas as pessoas à minha volta, uma a uma. Afinal, era só uma questão de tempo. Fomos feitos um pro outro, nosso amor vem de outras vidas. Nenhum desentendimento pontual nos separaria em definitivo. Além do mais ela sabia do meu hábito de caminhar pelas ruas do bairro onde um dia nos aproximamos, conhecia meus horários e os lugares preferidos. Não tardaria a aparecer de repente, com seu jeito confiante e aquele sorriso no olhar capaz de me desmontar por inteiro.Fingiria timidez ao me pedir rápidas desculpas por ter ido embora dizendo que me via como alguém sem perspectivas.E na cena seguinte já estaríamos de mãos dadas como se nosso último encontro tivesse sido no dia anterior. 

Mas esse filme só entrou em cartaz na minha cabeça.Na vida real ela nunca me procurou pelas ruas, não telefonou nem mandou e-mail.Agora o acaso nos coloca na mesma calçada, a poucos passos de nos encararmos novamente. Justo hoje precisava fazer esse calorão? Mês de julho e vinte e nove graus. De onde tirei a ideia de voltar a pé da consulta médica por esses cinco quarteirões de subida? Ela continua incrível; não usa mais meu corte de cabelo preferido, mas segue deslumbrante. E eu todo suado, testa brilhando, cabelo oleoso. Carrego um patético resultado de endoscopia digestiva e uma receita de Omeprazol. Num reflexo atravesso a rua e espio apenas para me certificar de não ter sido visto.Não consigo notar se há sinal de aliança no dedo.

Como teria sido se eu permanecesse naquela calçada? Ela me mostraria no celular, empolgada, foto de marido e filho?Ou choraríamos abraçados sem dizer uma palavra antes de nos beijarmos. A certeza é que amanhã, por volta desse mesmo horário, vou passar por lá. De banho tomado.Farei isso durante cinco anos, sete anos, cinco vezes sete. E nunca mais atravesso a rua. A não ser que, dessa vez, ela esteja do outro lado.




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