Não, eu não pude

Karina Sgarbi



Vai acontecer daqui a duas horas. Antes, uma festa de aniversário de um amigo em comum. Eles vão chegar separados, mas já trocam beijos há algum tempo. Vão ficar um pouco para disfarçar, até a hora de cantar parabéns, talvez um tanto mais. Ou, quem sabe, nem isso. Sairão sorrateiros. Ele tomou emprestado o carro do pai, passou a tarde de sábado lavando, polindo. Ela pintou as unhas, fez escova no cabelo, colocou uma lingerie nova. Vermelha.

Eu queria ter voz agora. Gritar para que não acontecesse o que ainda não aconteceu, mas vai acontecer. Evitem essa noite! Mas não, eu não pude.

São dez e meia da noite de uma sexta-feira de verão numa casa grande de um bairro de classe média. A festa está cheia de gente. Todos jovens, bem arrumados, bêbados, alguns drogados. Acho que eles acham bom ser assim. Que seja. Olha, ela chegou com duas amigas. Vestido azul com estampa de flor. Que linda! E há ainda aqueles olhos castanhos grandes, expressivos, profundos. Olhos de verdade. Acho que sempre vou suspirar de amor quando pensar nela. E de encanto, também.

Pegou uma bebida, parabenizou o aniversariante. Vai tomar vodka com tônica. Olha agora o jardim, todas aquelas pessoas e nenhuma delas é a única pessoa que ela espera. Tenta se distrair, conversa futilidades com as amigas, reencontra um colega do qual não recorda sequer o nome mas finge lembrar, bebe outro drink. Faz calor. Ela espera.

Não é coragem que me falta para ir até lá e impedir tudo. Se ela soubesse como vai ser daqui em diante, certamente recuaria. Mas não, eu não pude. Passa das onze. Ele ainda não veio. Ah, como eu queria que ele jamais chegasse.

A música está alta. Alguns dançam, foi apagada a maior parte das luzes. Acho que eles têm vergonha de se mostrar. Ela quer acompanhar as amigas, deixar o corpo seguir o embalo do som. Como ela é linda, mesmo ali parada, com o copo na mão esquerda, dividida entre as risadas provocadas pelas coreografias à sua frente e pela angústia da espera de alguém que ela acredita amar. Tola, estúpida!
Bem, já não é mais preciso olhar a festa. Ele chegou. Camiseta verde com estampa de umas pranchas de surfe fixadas na areia de uma praia qualquer, calça jeans escura. Ele é horrível. Entra na casa e sua primeira ação é encher um copo com cerveja, mas é claro que já está bêbado. Ninguém pode saber do romance. Não, não posso chamar isso de romance. Ninguém pode saber desse envolvimento. Assim fica mais adequado. O maldito tem namorada, que é amiga também de todos que estão ali. Mas a garota está viajando com a família. Ele prometeu ser fiel, se comportar. Todos sabem que isso não vai acontecer, só ninguém sabe com quem vai ser.

Ela o cumprimenta de forma discreta. Ele faz sinal para irem ao jardim. Lá, em uma única frase, indica o planejamento da noite. Ela sai sem ser vista, obedece à risca: em menos de dois minutos já está escondida no veículo. Ele demora para vir. Se eu pudesse o teria segurado, a teria sacado do carro. Mas não, eu não pude.

Meia hora depois, ele chega. Bate o arranque e sai acelerando mais do que o necessário. Não diz uma palavra. Ela ameaça levantar e, de pronto, ele reage com a mão direita a empurrando para baixo. Estava a olhando pelo retrovisor. O percurso dura uns 20 minutos, está quase na hora.

Motor desligado, freio de mão puxado. Em volta, silêncio, árvores e as estrelas. A lua se esconde. Ela tem medo de levantar, não quer ser empurrada novamente. Mas quer seguir com o planejado, há dias que pensa nesse momento. Ele diz que ela pode sentar no banco da frente. Não fala mais nada. Olha para ela e começa a tirar a roupa, dele e dela, ao mesmo tempo. Está com pressa, é grosseiro, não é como ela esperava. Ela quer dizer que gosta dele, que a noite é especial, que está feliz de estar ali. Que aguarda ansiosa pela volta da namorada, pelo término da relação, pelo começo do amor deles de forma livre, sem esconderijos. Mas não consegue proferir uma só palavra.

A pele clara e sensível dela fica vermelha onde ele aperta. Ela tenta afastar, não consegue. Quer gritar, pedir para parar. Ele não deixa, a cala com beijos forçados, a impede entrando no seu corpo sem que ela deseje, sem que ela permita, sem que ela se defenda.

Eu queria poder parar isso. Bater nele até minhas mãos sangrarem. Mas não, eu não pude.
Ela não sabe ainda, mas já pressente que se relacionar com ele é e sempre será ruim. Ele vai bater nela quando souber que engravidou. Vai socar a barriga dela para matar o filho que ele não quer. Mas não vai adiantar. A criança vai nascer.

Escândalo. Eles vão casar, forçados pelos pais, porque é assim que acham que deve ser. Ele vai beber mais e mais, todos os dias. Ela vai usar maquiagem para esconder os hematomas. O filho vai chorar todas as noites.

Numa delas, ele, impaciente, bêbado, raivoso, vai pegar uma arma, aquela que ganhou numa aposta com o Luiz no bar. Vai brincar de roleta russa. Colocar uma bala e testar a sorte de vida da família que ele nunca quis - e que nunca quis alguém como ele.

Eu, então aos seis anos de vida, vou ter sorte. O disparo sairá em falso. Ela, então aos 21, terá mais sorte ainda. O tiro acertará em cheio seu peito.

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