Hashtag carpe diem

Beatriz Ferraz Lopes Ré



Acorda.

A selfie sem maquiagem.
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A selfie pra mostrar a roupa do dia.
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A selfie no metrô lotado.
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A foto da mesa de trabalho, lotada de papéis.
A foto do prato do almoço.
A foto da torta de sobremesa.
A selfie com os amigos do trabalho.
A foto do cafezinho.

O machucado no pé depois de batê-lo na mesa.
Foto.
O pôr do sol entre prédios.
Foto.
Os copos de cerveja do happy hour no bar da esquina.
Foto.

O cachorro pedindo carinho.
O livro de cabeceira que lê antes de dormir.

Foto.
Foto.
Foto.
Foto.

Foto.

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Apaga a luz.

Sorri.

O investigado

Arnaldo Antunes



– Bom dia, o senhor mandou me chamar?
– Ah, oi… bom dia, Carlinhos. Entre, entre. Feche a porta, por favor. Há quanto tempo está no partido? Uns dois anos?
– Ainda vai fazer um ano, senhor.
– Pois é, já tá na hora de se envolver mais nas questões importantes, de assumir mais responsabilidades, entende?
– Sim, claro. Concordo plenamente.
– Então, pensando nisso a gente resolveu contar com a sua colaboração. Você gosta de viajar, não gosta? Pois é, quem não gosta? Manter um partido com a nossa importância é muito complicado, sabe?
– É… imagino.
– A gente sempre precisa contar com a ajuda de alguns parceiros que fazem parte do nosso grupo político, mesmo sem ser filiado, entende? Eles também participam do nosso projeto de substituir esse governo incompetente e corrupto que está aí.
– Pode contar comigo, senhor.
– Tenho certeza disso. A gente precisa que você pegue um valor… coisa pouca, sabe? Um certo valor com um pessoal lá de Minas Gerais e traga pra cá. Só isso. Já compramos uma passagem pra você. Seu ônibus sai amanhã pela manhã.
– Tudo bem, mas não seria mais fácil depositar na conta do partido e economizar a viagem?
– É uma coisa de princípio, sabe? Não gosto de dar dinheiro pra banqueiro. Os caras são uns verdadeiros ladrões. E a gente é que leva a fama.
– Ok, mas não era o Oliveira que fazia isso?
– Era, mas ele tá cuidando de outras coisas agora. Assumindo novas responsabilidades. Igual a você. Não fique preocupado com nada. Vou até ligar pra Isabel, pra ver se ela já tá cuidando de tudo.
– Alô? Belzinha, querida?
– Fala, meu presidente… é sobre aquele assunto do Carlinhos?
– É, eu estou com ele aqui no viva-voz. Já adiantou a documentação pra doação daquele fazendeiro?
– Tá tuuudo certo. Nos conformes.
– Obrigado, querida. Tchau, tchau.
– Viu? Não tem com o que se preocupar. Vamos almoçar juntos? Ainda temos alguns detalhes para acertar.
– Desculpe, senhor, mas o Toledo já me convidou e eu fiquei sem jeito de recusar.
– O quê? Tá se bandeando pra facção rival? Brincadeira… O Toledo é parceiro demais. É gente nossa, sabe? Então, a gente se reúne depois do almoço.

********************

– E aí, como é que foi? Fez o que eu te pedi?
– Você estava certo, Toledo. Eu tinha que gravar mesmo.
– Eu te falei, garoto, conheço esse pessoal. Bom, vamos conversar durante o almoço. Agora sei que você é um cara leal. Tenho um cargo que pode te interessar.

E se eu não tivesse atravessado a rua?

Fernando Salles



Pelas contas que processei mentalmente enquanto ajeitava os óculos de sol, eram sete longos anos sem vê-la e sem trocar qualquer palavra com ela. Os mesmos cálculos eu refiz mais tarde para perceber que haviam se passado “apenas” cinco anos, quatro meses e doze dias. A saudade ofusca nossa percepção do tempo na mesma intensidade com que o sol baixo das tardes de inverno engana a visão. Mas eu estava, sim, enxergando direito: era ela quem vinha distraída na minha direção, sem se dar conta do reencontro iminente.

Nos primeiros meses depois de seguirmos caminhos diferentes eu andava por aí de olho em todas as pessoas à minha volta, uma a uma. Afinal, era só uma questão de tempo. Fomos feitos um pro outro, nosso amor vem de outras vidas. Nenhum desentendimento pontual nos separaria em definitivo. Além do mais ela sabia do meu hábito de caminhar pelas ruas do bairro onde um dia nos aproximamos, conhecia meus horários e os lugares preferidos. Não tardaria a aparecer de repente, com seu jeito confiante e aquele sorriso no olhar capaz de me desmontar por inteiro.Fingiria timidez ao me pedir rápidas desculpas por ter ido embora dizendo que me via como alguém sem perspectivas.E na cena seguinte já estaríamos de mãos dadas como se nosso último encontro tivesse sido no dia anterior. 

Mas esse filme só entrou em cartaz na minha cabeça.Na vida real ela nunca me procurou pelas ruas, não telefonou nem mandou e-mail.Agora o acaso nos coloca na mesma calçada, a poucos passos de nos encararmos novamente. Justo hoje precisava fazer esse calorão? Mês de julho e vinte e nove graus. De onde tirei a ideia de voltar a pé da consulta médica por esses cinco quarteirões de subida? Ela continua incrível; não usa mais meu corte de cabelo preferido, mas segue deslumbrante. E eu todo suado, testa brilhando, cabelo oleoso. Carrego um patético resultado de endoscopia digestiva e uma receita de Omeprazol. Num reflexo atravesso a rua e espio apenas para me certificar de não ter sido visto.Não consigo notar se há sinal de aliança no dedo.

Como teria sido se eu permanecesse naquela calçada? Ela me mostraria no celular, empolgada, foto de marido e filho?Ou choraríamos abraçados sem dizer uma palavra antes de nos beijarmos. A certeza é que amanhã, por volta desse mesmo horário, vou passar por lá. De banho tomado.Farei isso durante cinco anos, sete anos, cinco vezes sete. E nunca mais atravesso a rua. A não ser que, dessa vez, ela esteja do outro lado.




Apolo



Laura saiu na noite fria, checou o horário e entrou no carro. Tinha mais tempo do que o necessário para chegar ao local e realizar o trabalho. Ligou o motor e saiu em direção à Quinta Avenida. As ruas estavam quase vazias, havia somente alguns bêbados saindo de bares e casas noturnas e tentando tentavam encontrar seus caminhos para casa.

Laura preferia dirigir à noite: não gostava daquele ritmo frenético que as grandes cidades costumavam ter durante o dia. Tudo era mais calmo, solitário e perigoso. Disso ela tinha certeza. E ainda assim preferia a escuridão.

Ela entrou numa viela escura, passou por alguns sem-teto que se escondiam do público para continuarem com as suas atividades ilícitas em paz, e virou à direita. Dirigiu por mais alguns metros em uma rua residencial que estava completamente vazia àquela hora da noite. Deu a volta no quarteirão e parou em frente a uma cerca que dava para os fundos de uma casa grande, de dois andares.

Os faróis foram desligados e ela ficou observando por alguns minutos. Em seguida vestiu a jaqueta de couro, as luvas, pegou a pistola 45 que havia recebido em sua porta na noite anterior juntamente com as instruções, e se preparou para agir. Todas as luzes da casa se apagaram. Estava quase na hora.
Checou o relógio novamente, esperou mais alguns momentos e então abriu a porta do carro. Com agilidade, escalou a cerca de madeira.

Protegida pela escuridão, Laura foi rapidamente até a porta dos fundos. Tirou seu kit do bolso interno da jaqueta e começou a trabalhar na fechadura. Ouviu uma sirene e parou por um momento. Uma gota de suor escorria em sua têmpora, apesar da noite fria.

Pensou ter sido descoberta, mas logo o som da sirene se afastou e ela continuou lidando com a fechadura da porta. Então ela ouviu o “click” e, sem hesitar, entrou.

Silenciosamente como um felino, ela atravessou a cozinha e a sala de estar.

A casa estava cuidadosamente organizada, mas ela sabia que não poderia se relaxar. A planta havia sido estudada cuidadosamente e Laura sabia exatamente onde deveria ir, mas também sabia que era muito fácil se distrair e cometer um erro. Não se ouvia nenhum ruído no andar de baixo somente o som da sua própria respiração. Começou a subir as escadas, calculando cada passo, e logo se viu no andar de cima.

Laura sabia Como sabia exatamente qual era o quarto que deveria entrar, se dirigiu até o final do corredor. Colou seu ouvido na porta e agradeceu mentalmente pelo fato de o silêncio ser tão absoluto,
pôde até mesmo distinguir a respiração da pessoa que dormia lá dentro.

Laura abriu a porta lenta e cuidadosamente. O quarto estava escuro, mas ela pôde distinguir um vulto ressonando suavemente enrolado nos lençóis brancos na cama king-size. Respirou por um momento e deu dois passos para dentro do quarto. O piso de madeira rangeu, e ela congelou. O vulto pareceu não ouvir, então ela tirou a pistola com silenciador que estava no cós de sua calça, apontou para a vítima e puxou o gatilho.

Ouviu um gemido abafado, como um choro interrompido, mas isso não a incomodou. Então, sem se apressar e não mais se preocupando com o barulho, saiu da casa pelo mesmo lugar em que entrou.
Sempre se sentia aliviada quando terminava uma missão, pois sabia que seria muito bem recompensada. Não podia dizer que gostava, de fato, dessa vida. Mas a adrenalina e o perigo a tiravam de uma existência monótona, sem falar no fato de que os honorários eram também um incentivo e tanto.

Laura tirou a jaqueta, as luvas, e colocou num saco plástico preto juntamente com a pistola, como de costume. Ligou o carro e seguiu para o ponto de despejo.

Em uma rua sem saída, havia uma lata de lixo marcada com tinta vermelha. Ela reconheceu o sinal e colocou o saco plástico e o arquivo dentro, deu meia volta e finalmente foi pra casa.

Ao abrir a porta de seu pequeno apartamento, notou as luzes da cozinha acesas. Silenciosamente, abriu a gaveta do aparador, que ficava ao lado da porta, e pegou sua arma. Andou devagar até a cozinha, mas não ouvia nenhum ruído. Entrou na cozinha com muito cuidado, e o coração batendo forte. Não havia ninguém: tudo estava exatamente como ela havia deixado. Foi até o quarto e começou a se despir. Pegou a toalha, e entrou no banheiro para ligar o chuveiro. Laura se olhava no espelho e pensava que tudo tinha saído perfeitamente bem. Aproveitando a adrenalina que ainda corria em seu corpo.

Já estava prestes a entrar embaixo do chuveiro, quando ouviu a campainha. Achou estranho o fato de o porteiro não a ter chamado pelo interfone, mas imaginou que poderia ser alguma vizinha. Se enrolou na toalha, e foi até a porta. Olhou pelo olho-mágico e não viu ninguém lá fora.

Correu até a cozinha e pegou a arma que havia deixado em cima do balcão. Voltou correndo até a porta e a abriu um pouco. Não havia ninguém, mas logo sentiu o líquido quente se espalhando no chão e molhando seus pés. Foi aí que olhou para baixo e viu o animal ensanguentado, dentro de uma caixa. O pastor alemão era somente uma carcaça sem vida. Laura soube imediatamente o que estava acontecendo quando viu o nome “Apolo” na coleira, e um papel dobrado preso a ela.
Ela escancarou a porta, mas não viu nenhum sinal de quem havia feito a entrega: o corredor estava escuro e completamente deserto.

Abaixou-se, e pegou o papel. Ficou horrorizada quando leu as palavras ali escritas:

“TENTE OUTRA VEZ”